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Violência de Slavoj Zizek



Por Erick da Silva

Ler algum dos livros do filosofo esloveno Slavoj Žižek é sempre uma experiência que nunca deixa de nos impressionar. O seu pensamento radical, onde em sua crítica ao capitalismo se utiliza principalmente da filosofia marxista hegeliana e da psicanálise lacaniana, busca escrutinar as contradições do sistema para além do aparente. A sua peculiar escrita, onde anedotas e passagens de filmes Hollywoodianos são largamente utilizados para ilustrar suas ideias, compõem um raciocínio original que muitas vezes não se apresenta de forma linear ou evidente. Emoldurado em momentos de brilhantismo, com afirmações polêmicas e polissêmicas, ler a Žižek é sempre desafiador.

No livro Violência – seis reflexões laterais, publicado pela editora Boitempo, o filosofo esloveno aborda a questão de como a violência, para além de suas manifestações socialmente condenadas, é parte estrutural do próprio sistema capitalista. Recordando a George Orwell quando este afirma que “As pessoas dormem tranquilamente à noite porque existe homens brutos dispostos a praticar violência em seu nome”, o autor desenvolve uma análise que busca compreender o fenômeno da violência para além de suas manifestações ostensíveis. 

Cartum: Slavoj Zizek como técnico de futebol


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Filosofia em charges: Slavoj Zizek - Da Tragédia à Farsa






Vídeo com legendas em português, mas tem que clicar em CC






Žižek: Como o Wikileaks abriu nossos olhos para a ilusão da liberdade


Por Slavoj Žižek
Nós nos lembramos dos aniversários de eventos importantes de nossa época: 11 de setembro (não apenas o ataque às Torres Gêmeas em 2001, mas o golpe contra Salvador Allende, no Chile, em 1973), o Dia D etc. Talvez outra data deva ser adicionada a esta lista: 19 de junho.
A maioria de nós gostaria de dar um passeio durante o dia para tomar uma lufada de ar fresco. Deve haver uma boa razão para aqueles que não podem fazê-lo – talvez eles tenham um trabalho que os impede (mineiros, mergulhadores), ou uma estranha doença que faz com que a exposição à luz solar seja um perigo mortal. Mesmo prisioneiros têm a sua hora diária de caminhada ao ar fresco.
Faz dois anos desde que Julian Assange foi privado deste direito: ele está confinado permanentemente ao apartamento que abriga a embaixada equatoriana em Londres. Se sair, seria preso imediatamente. O que Assange fez para merecer isso? De certa forma, pode-se entender as autoridades: Assange e seus colegas denunciantes [whistleblowers] são frequentemente acusados de serem traidores, mas são algo muito pior (aos olhos das autoridades).

Slavoj Žižek: A utopia de Piketty


Por Slavoj Žižek

Le Capital au XXIe siècle, é um livro essencialmente utópico. Por que? Por conta de sua modéstia. Thomas Piketty percebe a tendência inerente do capitalismo à desigualdade social, de tal forma que a ameaça à democracia parte do interior da própria dinâmica capitalista. Até aí tudo bem, estamos de acordo. Ele vê o único ponto luminoso da história do capitalismo entre as décadas de 30 e de 60, quando essa tendência à desigualdade era controlada, com um Estado mais forte, Welfare State etc. Mas reconhece ainda que as condições para isso foram – e eis a trágica lição do livro – Holocausto, Segunda Guerra Mundial e crise. É como se estivesse implicitamente sugerindo que nossa única solução viria com uma nova guerra mundial, ou algo assim!

Slavoj Žižek: A contradição principal da nova ordem mundial


Uma reflexão do Slavoj Žižek sobre alguns dos elementos de tensão que envolvem a atual ordem mundial capitalista. A fora alguns questões menos centrais, o maior equivoco do texto é a caracterização que faz sobre a América Latina, de resto é uma boa e profícua leitura da conjuntura, a luz das tensões que ocorrem na Ucrânia, seus desdobramentos e como se insere em uma possível reorganização global descolada de um centro hegemônico nos EUA.

Por Slavoj Žižek

Conhecer uma sociedade não é apenas saber suas regras explícitas. É também compreender como funciona sua aplicação: saber quando usar e quando violar as normas, saber quando recusar uma escolha oferecida e saber quando fingir que está se fazendo algo por livre escolha quando trata-se efetivamente de uma obrigação. Considere o paradoxo, por exemplo, das “ofertas-feitas-para-serem-recusadas”. Quando sou convidado a um restaurante por um tio rico, ambos sabemos que ele cuidará da conta, mas devo mesmo assim insistir em rachar ela – imagine minha surpresa se meu tio simplesmente dissesse: “Ok, então, pode pagar!”

Žižek: O Desejo e o Fascismo contemporâneos


Que estranha relação existe entre a luta de Julian Assange, confinado numa embaixada do Equador, e a resistência a Hitler?

Por Slavoj Žižek

Em dezembro de 2013 visitei Julian Assange na embaixada equatoriana localizada logo atrás da loja Harrods em Londres. Foi uma experiência um tanto deprimente, apesar da gentileza do pessoal da embaixada. A embaixada é um apartamento de seis cômodos sem jardim anexo, de forma que Assange não pode nem dar uma andada diária ao ar livre. Ele também não pode pisar para fora do apartamento, ao corredor principal da casa – policiais esperam por ele lá. Algo como uma dúzia deles estão o tempo todo em torno da casa e em alguns dos prédios circundantes, um deles inclusive debaixo de uma pequena janela de banheiro que dá para o jardim dos fundos, caso Assange tente escapar por aquele buraco na parede. O apartamento é grampeado de cima a baixo, sua ligação de internet é suspeitosamente lenta… então como assim o Estado britânico decidiu empregar em torno de 50 pessoas em tempo integral para vigiar Assange e controlá-lo sob o pretexto legal de que ele se recusa a ir à Suécia para ser questionado sobre uma má conduta sexual leve (não há acusações legais contra ele!)? É tentador se tornar um thatcherista e perguntar: onde está a política de austeridade aqui? Se um ninguém como eu fosse procurado pela polícia sueca para uma interrogação semelhante o Reino Unido também empregaria 50 pessoas para me vigiar? A pergunta séria está aqui: de onde brota tal desejo ridiculamente excessivo de vingança? O que Assange, seus colegas e fontes denunciantes fizeram para merecer isso?

Žižek: Se eu dominasse o mundo


Por Slavoj Zizek
No thriller Havana Bay, de Martin Cruz Smith, um visitante americano se vê enredado numa trama contra Fidel Castro, mas depois descobre que ela tinha sido organizada pelo próprio Castro. Castro está perfeitamente ciente do crescente descontentamento com seu governo, mesmo na mais alta cúpula de seus funcionários, então a cada dois anos ele encarrega um agente secreto de organizar um complô para derrubá-lo, a fim de extirpar seus funcionários desleais. Assim, no momento em que o plano está prestes a ser executado, os dissidentes são presos e liquidados. 
Essa é a primeira coisa que faria para assegurar meu reino se eu dominasse o mundo – até Deus faz isso em O homem que era quinta-feira, de G.K. Chesterton, então não estaria em má companhia!

Slavoj Zizek: O fracasso socialista de Mandela


Por Slavoj Zizek


Nas últimas duas décadas da vida, Nelson Mandela foi festejado como modelo de como libertar um país do jugo colonial sem sucumbir à tentação do poder ditatorial e sem postura anticapitalista. Em resumo, Mandela não foi Robert Mugabe, e a África do Sul permaneceu democracia multipartidária com imprensa livre e vibrante economia bem integrada no mercado global e imune a horríveis experimentos socialistas. Agora, com a morte dele, sua estatura de sábio santificado parece confirmada para toda a eternidade: há filmes sobre ele (com Morgan Freeman no papel de Mandela; o mesmo Freeman, aliás, que, noutro filme, encarnou Deus em pessoa). Rock stars e líderes religiosos, esportistas e políticos, de Bill Clinton a Fidel Castro, todos dedicados a beatificar Mandela.

Zizek: "Quem são os responsáveis pela paralisia do governo nos EUA? Os mesmos idiotas responsáveis pela crise de 2008"




Em abril de 2009 eu estava descansando num quarto de hotel em Syracuse, alternando entre dois canais: um documentário da PBS sobre Pete Seeger, o grande cantor americano de música country da esquerda; e uma reportagem da Fox News sobre o anti-tributário Tea Party, com um cantor de música country apresentando uma canção populista sobre como Washington está tributando os cidadãos comuns e trabalhadores para financiar os financistas de Wall Street. Havia uma estranha similaridade entre os dois cantores: ambos articulavam acusações anti-estabilishment e populistas contra os ricos exploradores e seu Estado; ambos clamavam por medidas radicais, incluindo a desobediência civil.

Zizek: Snowden, Manning e Assange são nossos novos heróis

Snowden, Manning e Assange são nossos novos heróis: Eles revelaram algo que não só os EUA, mas todos os grandes poderes estão fazendo.
Por Slavoj Zizek
Todos nos lembramos do rosto sorridente do presidente Obama, cheio de esperança e confiança, em sua primeira campanha: “Yes, we can!” — nós podemos nos livrar do cinismo da era Bush e trazer justiça e bem-estar para o povo americano. Agora que os EUA continuam suas operações secretas e expandem sua rede de inteligência e espionagem até mesmo na direção de seus aliados, podemos imaginar manifestantes gritando para Obama: “Como você pode usar os drones para matar? Como você pode espiar nossos aliados?” Obama murmura com um sorriso zombeteiro: “Yes, we can.
Mas a personalização perde o sentido: a ameaça à liberdade revelada pelos whistleblowers tem raízes mais profundas, sistêmicas. Edward Snowden deve ser defendido não só por que seus atos envergonharam os serviços secretos dos EUA; ele revelou algo que não só os EUA, mas também todos os grandes (e não tão grandes) poderes – da China à Rússia, da Alemanha a Israel – estão fazendo (na medida em que são tecnologicamente capazes de fazê-lo).

Slavoj Zizek: "Giro em falso"



Por Slavoj Zizek
Com o golpe militar no Egito – em junho de 2013, o Exército, apoiado pelo núcleo duro dos manifestantes que derrubaram o regime de Mubarak dois anos atrás, depôs o presidente democraticamente eleito e o governo –, é como se o círculo de algum modo houvesse se fechado: os manifestantes que derrubaram Mubarak, pedindo democracia, agora celebram um coup d’état militar que abole a democracia. O que está havendo?

"Problemas no paraíso": Slavoj Zizek e os protestos na Grécia e Turquia




Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

Em seus primeiros escritos, Marx descreve a situação na Alemanha como situação na qual a única resposta a problemas particulares seria a solução universal: a revolução global. É expressão condensada da diferença 
entre período reformista e período revolucionário: em período reformista, a revolução global permanece como sonho que, se serve para alguma coisa, só serve para dar peso às tentativas para mudar alguma coisa localmente; em período revolucionário, vê-se claramente que nada melhorará, sem mudança global radical. Nesse sentido puramente formal, 1990 foi ano revolucionário: as muitas reformas parciais nos estados comunistas jamais dariam conta do serviço; e era necessária uma quebra total, para resolver todos os problemas do dia a dia; por exemplo, o problema de dar suficiente comida às pessoas.

Em que ponto estamos hoje, quanto a essa diferença? Os problemas e protestos dos últimos anos são sinais de que se aproxima uma crise global, ou não passam de pequenos obstáculos que pode enfrentar mediante intervenções locais? O mais notável nas erupções é que estão acontecendo não apenas, nem basicamente, nos pontos fracos do sistema, mas em pontos que, até aqui, eram percebidos como histórias de sucesso. Sabemos por que as pessoas protestam na Grécia ou na Espanha; mas por que há confusão em países prósperos e em rápido desenvolvimento como Turquia, Suécia ou Brasil?

Slavoj Žižek - Rabinovitch no Chipre


Confira abaixo artigo inédito, traduzido por Rogério Bettoni, enviado pelo autor para a Boitempo publicar em seu Blog.

Por Slavoj Žižek


Recordemos a cena clássica dos desenhos animados em que um gato chega à beira do precipício e continua caminhando, ignorando o fato de que não há chão sob suas patas; ele só começa a cair quando olha para baixo e se vê pairando sobre o abismo. Não é assim que o povo do Chipre se sente hoje em dia? As pessoas sabem que o Chipre nunca mais será o mesmo, que logo adiante haverá uma queda catastrófica no padrão de vida, mas o impacto total dessa queda ainda não foi sentido devidamente; então, por um curto período, as pessoas se dão ao luxo de continuar vivendo normalmente, como o gato que caminha tranquilo no ar. E não podemos condená-las: esse adiamento do colapso total também é uma estratégia de sobrevivência – o verdadeiro impacto acontecerá em silêncio, quando o pânico tiver acabado. Por isso é que agora, quando a crise no Chipre desapareceu em grande medida da mídia, devemos falar e escrever sobre ela.
Há uma piada famosa, contada na última década da União Soviética, sobre Rabinovitch, um judeu que quer emigrar. O funcionário do departamento de emigração pergunta o motivo, e ele responde: “Há dois motivos. O primeiro é o medo de que os comunistas percam o poder na União Soviética, e o novo governo coloque sobre nós, judeus, toda a culpa pelos crimes comunistas – e daí haverá mais pogroms…” O funcionário interrompe, dizendo: “Mas isso é uma bobagem, nada vai mudar na União Soviética, o poder dos comunistas vai durar para sempre!” “Pois então, esse é o segundo motivo”, responde Rabinovitch tranquilamente.
É fácil imaginarmos uma conversa semelhante entre um gestor financeiro da União Europeia e um Rabinovitch cipriota – Rabinovitch reclama: “Há duas razões para estarmos em pânico. Primeiro, temos medo de que a UE simplesmente abandone o Chipre e deixe nossa economia ruir…” O gestor financeiro o interrompe: “Você pode confiar na UE: nós os controlaremos com firmeza e diremos o que devem fazer!” E Rabinovitch responde tranquilamente: “Bem, essa é a segunda razão”.
Esse impasse representa perfeitamente o cerne da triste situação do Chipre: eles não podem sobreviver prosperamente sem a Europa, mas também não o podem com a Europa – as duas opções são piores, como diria Stalin. Recordemos a piada cruel de Ser ou não ser (1942), de Ernst Lubitch: quando questionado sobre os campos de concentração na Polônia ocupada, o responsável oficial nazista, apelidado de “Campo de Concentração Erhardt”, responde: “Nós concentramos, os poloneses acampam”. O mesmo não vale para a atual crise financeira europeia? A forte Europa Setentrional, voltada para a Alemanha, é responsável pela concentração, enquanto o Sul, enfraquecido e vulnerável, acampa. Desse modo, surgem no horizonte os contornos de uma Europa dividida: a região Sul será cada vez mais reduzida a uma zona com força de trabalho mais barata, fora da rede segura do bem-estar social, um domínio próprio para a terceirização e o turismo. Em suma, a lacuna entre o mundo desenvolvido e os retardatários avançará dentro da própria Europa.
Essa lacuna se reflete nas duas principais histórias sobre o Chipre, que lembram duas histórias anteriores sobre a Grécia. Há o que podemos chamar de história alemã: o gasto livre, as dívidas e a lavagem de dinheiro não podem continuar indefinidamente etc. E há a história do Chipre: as medidas brutais da UE resultam em uma nova ocupação alemã que destitui o Chipre de sua soberania. As duas histórias estão erradas, e as demandas que implicam são absurdas: o Chipre, por definição, não pode liquidar sua dívida, enquanto a Alemanha e a UE não podem simplesmente continuar injetando dinheiro para preencher o buraco financeiro cipriota. As duas histórias escondem o fato principal de que há algo errado com o sistema inteiro, no qual as especulações bancárias incontroláveis podem levar um país inteiro à falência. A crise do Chipre não é uma tempestade no copo d’água de um país marginal pequeno, mas um sintoma do que acontece com todo o sistema da UE.
Por isso a solução não é apenas uma regulação maior para evitar a lavagem de dinheiro etc., mas (pelo menos) uma mudança radical no sistema bancário inteiro – para dizer o indizível, algum tipo de socialização dos bancos. A lição das quebras no mundo inteiro desde 2008 é clara: a rede inteira de fundos e transações monetárias, desde depósitos individuais e fundos de aposentadoria até o funcionamento de todos os tipos de derivativos, terá de ser controlada socialmente, modernizada e regulada. Pode soar utópico, mas a verdadeira utopia é a ideia de que podemos, de alguma maneira, sobreviver com mudanças pequenas e cosméticas.
Nesse aspecto, devemos evitar uma armadilha fundamental: a necessária socialização dos bancos não é um compromisso entre o trabalho assalariado e o capital produtivo contra o poder das finanças. Colapsos e crises financeiras são lembretes óbvios de que a circulação do Capital não é um circuito fechado capaz de sustentar plenamente a si próprio, isto é, que essa circulação visa a realidade da produção e da venda de bens que satisfazem às necessidades das pessoas. No entanto, a lição mais sutil dos colapsos e das crises financeiras é que não há como retornar a essa realidade – toda a retórica do “passemos do espaço virtual da especulação financeira de volta às pessoas reais que produzem e consomem” é profundamente equivocada, é a ideologia em sua forma mais pura. O paradoxo do capitalismo é que não podemos jogar fora a água suja das especulações financeiras e guardar o bebê saudável da economia real: a água suja efetivamente é a “linhagem” do bebê saudável.
Isso significa apenas que a solução da crise do Chipre não está no Chipre. Para que o país tenha uma chance, alguma coisa terá de mudar alhures.
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Por que os fundamentalistas de livre mercado acreditam que 2013 será o melhor ano de todos


Por Slavoj Žižek


A edição de natal da revista britânica The Spectator publicou um editorial chamado “Por que 2012 foi o melhor ano de todos?” (disponível aqui, em inglês). O texto criticava a ideia de que vivemos em “um mundo perigoso e cruel, em que as coisas estão ruins e ainda pioram”. Eis o parágrafo de abertura: “Talvez não pareça, mas 2012 foi o ano mais formidável na história mundial. Essa afirmação soa algo extravagante, mas pode ser corroborada pelos fatos. Nunca houve menos fome, menos doenças ou mais prosperidade. O ocidente permanece em um marasmo econômico, mas a maioria dos países em desenvolvimento está progredindo e as pessoas estão saindo da pobreza a uma velocidade jamais registrada. Felizmente o número de mortos pela guerra ou por doenças naturais também está baixo. Estamos vivendo na idade do ouro.”
Essa mesma ideia tem sido fomentada de modo sistemático em uma série debestsellers, que vai de Rational Optimist, de Matt Ridley, a Better Angels of Our Nature, de Steven Pinker. Também há uma versão mais prática que se costuma ouvir na mídia, principalmente nos países fora da Europa: crise, que crise? Vejamos os chamados países do BRIC – Brasil, Rússia, Índia e China –, ou países como Polônia, Coreia do Sul, Singapura, Peru, até mesmo vários Estados da África subsaariana: todos estão progredindo. Os perdedores são a Europa Ocidental e, até certo ponto, os Estados Unidos – então não estamos lidando com uma crise global, mas simplesmente com a mudança do progresso, que se afasta do Ocidente. Um símbolo poderoso dessa mudança não seria o fato de que, recentemente, muita gente de Portugal, país em crise profunda, está voltando para Moçambique e Angola, ex-colônias de Portugal, mas dessa vez como imigrantes econômicos, e não como colonizadores?
Até mesmo com respeito aos direitos humanos: a situação na China e na Rússia não é melhor agora do que há 50 anos? Descrever a crise existente como um fenômeno global, como dizem, é uma típica visão eurocentrista advinda dos esquerdistas que geralmente se orgulham de seu antieurocentrismo. Nossa “crise global”, na verdade, é um mero abalo local em uma história mais ampla do progresso geral.
Mas é preciso conter nossa alegria. A pergunta que deve ser feita é: se a Europa, sozinha, está em declínio gradual, o que está substituindo sua hegemonia? A resposta é: “o capitalismo de valores asiáticos” – o que, obviamente, não tem nada a ver com o povo asiático e tudo a ver com a tendência nítida e atual do capitalismo contemporâneo em limitar ou até mesmo suspender a democracia.
Essa tendência não contradiz de modo nenhum o tão celebrado progresso da humanidade – ela é sua característica imanente. Todos os pensadores radicais, de Marx aos conservadores inteligentes, eram obcecados por esta questão: qual é o preço do progresso? Marx era fascinado pelo capitalismo, pela produtividade sem precedentes que ele desencadeava; mas Marx também frisava que esse sucesso engendra antagonismos. Devemos fazer o mesmo hoje: ter em vista a face obscura do capitalismo global que fomenta revoltas. 
As pessoas se rebelam não quando as coisas estão realmente ruins, mas quando suas expectativas são frustradas. A Revolução Francesa ocorreu apenas quando o rei e os nobres começaram a perder o poder; a revolta anticomunista de 1956 na Hungria eclodiu depois que Imre Nagy já era primeiro-ministro há dois anos, depois de debates (relativamente) livres entre os intelectuais; as pessoas se rebelaram no Egito em 2011 porque houve certo progresso econômico sob o governo de Mubarak, dando origem a uma classe de jovens instruídos que participavam da cultura digital universal. E é por isso que o pânico dos comunistas chineses faz sentido: porque, no geral, as pessoas hoje estão vivendo melhor do que há quarenta anos – os antagonismos sociais (entre os novos ricos e o resto) explodem e as expectativas são muito mais elevadas.
Eis o problema com o desenvolvimento e o progresso: são sempre desiguais, dão origem a novas instabilidades e antagonismos, geram novas expectativas que não podem ser correspondidas. No Egito, pouco antes da Primavera Árabe, a maioria vivia um pouco melhor do que antes, mas os padrões pelos quais mediam sua (in)satisfação eram muito mais altos.
Para não perder o elo entre progresso e instabilidade, é preciso realçar sempre como aquilo que, à primeira vista, parece ser a realização incompleta de um projeto social na verdade sinaliza sua limitação imanente. Existe uma história (apócrifa, talvez) sobre o economista keynesiano de esquerda John  Galbraith: antes de uma viagem à URSS no final da década de 1950, ele escreveu para seu amigo anticomunista Sidney Hook: “Não se preocupe, não me deixarei seduzir pelos soviéticos nem voltarei para casa dizendo que eles têm socialismo!”. Hook respondeu imediatamente: “Mas é isso que me preocupa – que você volte dizendo que a URSS não é socialista!”. O que Hook temia era a defesa ingênua da pureza do conceito: se as coisas derem errado com a construção de uma sociedade socialista, isso não invalida a ideia em si, mas significa apenas que não a executamos apropriadamente. Essa mesma ingenuidade não é detectada nos fundamentalistas de mercado da atualidade?
Durante um recente debate televisivo na França, quando o filósofo e economista francês Guy Sorman afirmou que a democracia e o capitalismo necessariamente andam juntos, não pude me negar fazer esta óbvia pergunta: “Mas e a China?”, ao que ele me repreendeu: “Na China não há capitalismo!” Para o pós-capitalista fanático Sorman, um país não é verdadeiramente capitalista se não for democrático, exatamente da mesma maneira que, para os comunistas democráticos, o stalinismo simplesmente não era uma forma autêntica de comunismo.
É assim que os atuais apologistas do mercado, em um sequestro ideológico sem precedentes, explicam a crise de 2008: não foi o fracasso do livre mercado que a provocou, mas sim a excessiva regulação estatal; o fato de que nossa economia de mercado não foi um verdadeiro Estado de bem-estar social, mas esteve, em vez disso, nas garras desse Estado. Quando rejeitamos as falhas do capitalismo de mercado como infortúnios acidentais, acabamos em um “progress(ism)o” que encara a solução como um uso mais “autêntico” e puro de uma noção, tentando assim apagar o fogo com gasolina.
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Slavoj Žižek, David Harvey e Perry Anderson em Porto Alegre


Slavoj Žižek em Porto Alegre

Conferência internacional De Hegel a Marx … e de volta a Hegel! A tradição dialética em tempos de crise
Com Slavoj Žižek (filósofo e psicanalista, Eslovênia).



ONDE: Câmara Municipal de Porto Alegre (Av. Loureiro da Silva, 255 – Centro)
QUANDO: 05 de março de 2013, às 19h
Inscrições: enviar e-mail para zizek.poa@laurocampos.org.br, a partir de 20/02, solicitando inscrição na conferência
A inscrição é gratuita. Vagas limitadas.
David Harvey em Porto Alegre
Conferência internacional Para entender O Capital
Com David Harvey (geórgrafo, Reino Unido).
ONDE: Teatro da Associação Médica do Rio Grande do Sul-AMRIGS (Av Ipiranga, 5311)
QUANDO: 25 de março de 2013, às 19h
Inscrições: enviar e-mail para harvey.poa@laurocampos.org.br, a partir de 20/02, solicitando inscrição na conferência
A inscrição é gratuita. Vagas limitadas.
A Boitempo Editorial e demais parceiros realizam durante os meses de março a maio o projeto “MARX: a criação destruidora”, que reunirá alguns dos mais renomados especialistas da tradição marxista, com destaque para o filósofo esloveno Slavoj Žižek, o geógrafo britânico David Harvey e o cientista político alemão Michael Heinrich, integrante do projeto MEGA-2 (Marx-Engels-Gesamtausgabe), instituição detentora e curadora dos manuscritos de Karl Marx e Friedrich Engels, este último sem confirmação de vinda para Porto Alegre.
Serão uma série de atividades, com programação, centralizada em São Paulo (confira aqui) e com atividades em  dividida em três etapas, que marca o histórico lançamento da edição especial, com tradução inédita, do livro I d’O Capital, de Karl Marx, 15º título da Coleção Marx Engels, além de Para entender O Capital, de David HarveyMenos que nada: Hegel e a sombra do materialismo dialético, de Slavoj Žižek. O evento se estenderá por outras cinco cidades (Porto Alegre, Brasília, Recife, Salvador e Rio de Janeiro), com conferências de Slavoj Žižek, David Harvey e debates entre alguns dos principais nomes do marxismo brasileiro contemporâneo.
Perry Anderson em Porto Alegre
Historiador e ensaísta britânico, um dos principais intelectuais marxistas (veja mais aqui), estará Porto Alegre no 14 de outubrono Salão de Atos da UFRGS, dentro do evento Fronteiras do Pensamento.
A má notícia é que a palestra não será gratuita como as de Žižek e Harvey. É necessário adquirir um passaporte para todas as palestras Fronteiras do Pensamento (veja aqui) ao custo de R$ 925. Como já foi feito em outras edições, não serão vendidos ingressos para palestras avulsas, tendo que comprar o "pacote completo" que inclui algumas figuras menos interessantes (para dizer o mínimo).
Obs: A UFRGS, como uma das entidades parceiras da realização do evento, não poderia propor alguma atividade gratuita para os estudantes e a comunidade? O Governo do Estado não poderia ser parceiro?
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Em filme sobre Bin Laden, Hollywood ajuda a 'normalizar' a tortura


Por Slavoj Zizek

Aqui está como, em uma carta ao jornal LA Times , a cineasta Kathryn Bigelow justificou a representação, no filme "A Hora Mais Escura" (o título em inglês é “Zero Dark Thirty”), de métodos de tortura usados pelos agentes do governo norte-americano para capturar e matar Osama Bin Laden:

"Aqueles de nós que trabalham com arte sabem que representação não é aprovação, elogio. Se o fosse, nenhum artista estaria apto a pintar atos desumanos, nenhum autor poderia escrever sobre eles, e nenhum diretor de cinema poderia se aprofundar em assuntos espinhosos de nosso tempo", escreveu ela ao jornal.

Sério? Ninguém precisa ser um moralista, ou ingênuo sobre as urgências da luta contra o ataques terroristas, para pensar que torturar um ser humano é, em si mesmo, algo tão destruidor que representá-lo de maneira neutra – isto é, neutralizar este caráter destruidor – é por si uma maneira de apoiá-lo.

Imagine um documentário que nos apresente o Holocausto de um jeito desinteressado e tranquilo, como uma enorme operação logística-industrial, focando nos problemas técnicos envolvidos (transporte, descarte de corpos, prevenção do pânico entre os prisioneiros que seriam postos nas salas de gás). Tal filme traria também consigo uma fascinação profundamente imoral com o assunto, ou estaria baseado numa neutralidade obscena em seu modo para gerar consternação e horror nos espectadores. Onde Bigelow se encaixa aqui?

Sem sombra de dúvida, ela está aliada a uma normalização da tortura. Quando Maya, a heroína do filme, presencia pela primeira vez uma simulação de afogamento, fica um pouco chocada, mas rapidamente aprende as artimanhas; mais adiante no filme ela chantageia friamente um prisioneiro árabe , "se você não cooperar, nós lhe mandaremos para Israel". Sua perseguição fanática atrás de Bin Laden ajuda a neutralizar escrúpulos morais comuns. 

Ainda mais ameaçador é seu parceiro, um agente da CIA jovem e barbado que domina perfeitamente a arte de passar desembaraçosamente da tortura para a gentileza uma vez que a vítima está completamente desamparada (acendendo seu cigarro e lhe contando piadas). 

Existe algo extremamente perturbador como, mais para frente, o este agente muda de um torturador vestindo jeans para um bem-vestido burocrata de Washington. Isto é normalização mais pura e eficiente – existe um pequeno mal-estar, mais pela sensação da tortura que pela ética, mas o trabalho tem de ser feito. 

A consciência de que esta sensação ruim sofrida pelo torturador é o principal custo humano da tortura deixa claro de que não se trata de uma propaganda conservadora barata: a complexidade psicológica é representada para que liberais possam se divertir com o filme sem se sentirem culpados. É por isso que “A Hora Mais Escura” é bem pior que “24 Horas” (série de TV), em que Jack Bauer, pelo menos, rompe com o serviço secreto no último episódio.

O debate se simulação de afogamento é o ou não tortura deve ser vista como um explícito irracionalismo: por que, se não causa dor ou medo de morrer, este afogamento faz falar terroristas suspeitos resistentes? A recolocação da palavra "tortura" no campo da "técnica aprimorada de interrogação" é a extensão da lógica politicamente correta: violência brutal praticada pelo Estado é publicamente aceitável quando a linguagem muda.

A defesa mais obscena feita do filme é a alegação de que Bigelow rejeita o moralismo barato, e de maneira sóbria apresenta a realidade da luta contra o terrorismo, levantando questões difíceis e que, assim, nos fazem pensar (ainda, alguns críticos adicionam, a diretora "desconstrói" clichês femininos – Maya não mostra sentimentalismo, ela é dura e dedicada em sua tarefa, como um homem). 

Mas, com a tortura, alguém pode não "pensar". Um paralelo com o estupro se faz, aqui, necessário por si mesmo: e se um filme mostrasse um estupro brutal neste mesmo jeito neutro, alegando que devemos evitar o moralismo barato e começarmos a pensar sobre o estupro em toda sua complexidade? 

Em nossas entranhas, fica a mensagem de que existe algo terrivelmente errado nisto. Eu gostaria de viver numa sociedade onde o estupro seja simplesmente inaceitável e que aquele que o relativize seja visto como um babaca excêntrico, não em uma sociedade onde alguém precise argumentar contra isto. O mesmo serve para tortura: um sinal de progresso ético está no fato da tortura ser "dogmaticamente" rejeitada como repulsiva, sem nenhuma necessidade de argumentação. 

Então o que dizer a respeito do argumento "realista": tortura sempre existiu, então não é melhor falar sobre isto publicamente? Este é, exatamente, o problema. Se a tortura sempre esteve aí, por que aqueles que estão no poder agora nos contam abertamente? Só há uma resposta: para normalizar, diminuir nossos padrões éticos.

Tortura salva vidas? Talvez, mas com certeza perdem-se almas – e a justificativa mais absurda é dizer que um verdadeiro herói está pronto para renunciar sua alma para salvar as vidas desta ou deste compatriota. 

A normalização da tortura vista em "A Hora Mais Escura" é um sinal do vácuo moral de que estamos gradualmente nos aproximando. Se há alguma dúvida sobre isto, tente imaginar um grande filme de Hollywood representando a tortura de um jeito similar 20 anos atrás. É impensável.

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O amor impiedoso de Slavoj Žižek


Por Erick da Silva

O filósofo esloveno Slavoj Žižek em seu livro O amor impiedoso (ou: Sobre a crença), lançado no Brasil pela Autêntica Editora, analisa a crença em nossa sociedade. Publicado simultaneamente na Alemanha e na Inglaterra como Die gnadenlose Liebe (O amor impiedoso) e como On belief (Sobre a crença), respectivamente, é uma instigante abordagem sobre os mecanismos do credo.
Valendo-se de múltiplas referências (uma marca da obra de Žižek), o autor traça relações que compõe sua analise sobre os aspectos abordados. Žižek busca demonstrar como permanece enraizada o fenômeno da crença em nossa sociedade supostamente sem Deus, ainda que tal premissa ("sociedade sem Deus") já seja ela própria questionável e fragilmente amparada, o que se explicita facilmente. Ele aborda diversas formas de crença, desde a religião cristã e o judaísmo até o hedonismo místico new-age. A forma e os mecanismos que a estruturam e se conectam com o próprio capitalismo contemporâneo.
O amor impiedoso é a própria crença. A própria religiosidade que se manifesta em sacrifícios desprovidos de qualquer lógica aparente. Como a do próprio Deus do cristianismo, que exige o sacrifício de seu próprio filho (Jesus), para redimir a humanidade perante a si mesmo, Deus!
Contrariando o prognóstico freudiano de que a ilusão religiosa sucumbiria diante do progresso da razão tecno-científica, Žižek, valendo-se nesta empreitada do instrumental  teórico fornecido por Lacan,  mostra que a estrutura da crença é enraizada em nossas práticas sociais mais insuspeitas e aparentemente inocentes, desde a maneira como lidamos com nossos corpos no contexto da razão cibernética até o comprometimento de nossa forma de vida com o capital.
Como bem apontou Vladimir Safatle, "Žižek mostra sua capacidade de partir de premissas aparentemente não problemáticas, disposições arraigadas de conduta, assim como mitos intelectuais que não são vistos como tais, a fim de mostrar como a estrutura da crença é muito mais arraigada do que gostaríamos de imaginar. Dessa forma, essa ampliação da crença não funciona como um convite à simples defesa de sua racionalidade, mas à consciência clara dos desafios que um pensamento realmente crítico deve saber superar."
Neste sentido, o esforço de Žižek em atualizar o pensamento da esquerda, que nesta obra direciona-se principalmente no campo da psicanálise, buscando vincular a psicanálise e anticapitalismo, tentando superar simplificações freudo-marxistas, Žižek aproxima Marx, Lacan e todo um importante referencial crítico nesta empreitada.
Retomando Lenin, Žižek afirma: "A escolha verdadeiramente livre é aquela na qual eu não simplesmente escolho entre duas ou mais opções no interior de um conjunto prévio de coordenadas, mas escolho mudar esse próprio conjunto de coordenadas". Nesta direção que se aponta a urgência e a necessidade de uma reflexão crítica radical anticapitalista.
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Bem-vindo ao “reino animal espiritual”: Artigo de Slavoj Žižek sobre o vácuo moral do capitalismo global


Confira abaixo artigo inédito, traduzido por Rogério Bettoni, enviado com exclusividade pelo autor para a Boitempo publicar em seu Blog.

Por Slavoj Žižek


O documentário The Art of Killing [O ato de matar, Final Cut Film Production, Copenhagen] estreou em 2012 no Festival de Cinema de Telluride e foi exibido no Festival Internacional de Cinema de Toronto. Dirigido por Joshua Oppenheimer, o filme nos mostra uma visão única e profundamente perturbadora do impasse ético do capitalismo global.
O filme – rodado em Medan, Indonésia, em 2007 – relata um caso de obscenidade levado ao extremo: um filme realizado por Anwar Congo e seus amigos, que hoje são políticos respeitados, mas já foram gângsteres e líderes de esquadrão da morte, tendo desempenhado um papel importante no assassinato de cerca de 2,5 milhões de supostos simpatizantes comunistas em 1966, principalmente chineses étnicos. The Act of Killing trata de “assassinos que venceram e do tipo de sociedade que construíram”. Depois de vencerem, seus atos terríveis não foram relegados à condição de “segredo sujo”, o crime fundador cujos traços devem ser obliterados – ao contrário, eles se vangloriam abertamente dos detalhes dos massacres (o jeito de estrangular vítimas com um fio, o jeito de cortar a garganta, como violentar uma mulher da maneira mais prazerosa…). Em outubro de 2007, a televisão estatal da Indonésia produziu um programa de entrevistas celebrando Anwar e seus amigos; no meio do programa, depois que Anwar diz que os assassinatos foram inspirados em filmes de gângsteres, a sorridente apresentadora vira-se para a câmera e diz: “Incrível! Uma salva de palmas para Anwar Congo!”. Quando ela pergunta se Anwar tem medo da vingança dos parentes das vítimas, ele responde: “Eles não podem se vingar. Quando levantam a cabeça, nós cortamos elas fora”. Um de seus escudeiros acrescenta: “Vamos exterminar todos eles”, e o público explode em uma exuberante aclamação… é preciso ver para acreditar que isso é possível. Mas o que também torna The Act of Killing extraordinário é o nível de reflexividade entre documentário e ficção – de certo modo, o filme é um documentário sobre os efeitos reais de se viver em uma ficção:
Para explorar a arrogância estarrecedora dos assassinos, e para testar o limite de seu orgulho, nós começamos com retratos documentais e simples reconstituições dos massacres. Mas quando percebemos que tipo de filme que Anwar e seus amigos realmente queriam fazer sobre o genocídio, as reconstituições ficaram mais elaboradas. Até que oferecemos a eles a oportunidade de dramatizar os assassinatos usando os gêneros cinematográficos que quisessem (western, gângster, musical). Ou seja, nós demos a eles a chance de roteirizar, dirigir e estrelar as cenas que eles tinham em mente enquanto matavam as pessoas.” [1]
Eles atingiram o limite do “orgulho” dos assassinos? Eles mal chegaram a encostar em Anwar quando propuseram que ele representasse, em uma reconstituição, a vítima de suas torturas; quando um arame é colocado em volta do seu pescoço, ele interrompe a atuação e diz “Perdoem-me pelo que fiz”. Mas isso é mais um relapso temporário que não levou a nenhuma crise mais profunda de consciência – seu orgulho heroico assume de novo o controle no mesmo instante. Talvez a tela protetora que impediu uma crise moral mais profunda fosse a mesma tela cinematográfica: como na tortura e nos assassinatos reais do passado, eles experimentaram sua atividade como uma encenação de seus modelos cinematográficos, o que possibilitou que experimentassem a própria realidade como ficção – na condição de grandes admiradores de Hollywood (eles começaram a carreira como organizadores e controladores do mercado negro de ingressos de cinema), eles já representavam um papel nos seus massacres, imitando um gângster, um cowboy ou até mesmo um bailarino de Hollywood.
Aqui entra o “grande Outro”, não só pelo fato de os criminosos terem cometido seus assassinatos nos moldes do imaginário cinematográfico, mas também principalmente, e de modo muito mais importante, por conta do vazio moral da sociedade: de que tipo de tessitura simbólica (conjunto de regras que traçam a linha entre o que é e o que não é publicamente aceitável) uma sociedade deve ser composta se até mesmo um nível mínimo de vergonha pública (o que obrigaria os criminosos a tratar seus atos como um “segredo sujo”) é suspenso, e a orgia monstruosa da tortura e da matança pode ser celebrada publicamente mesmo décadas depois de ter acontecido, não só como crime necessário e extraordinário pelo bem público, mas como atividade comum, prazerosa, aceitável? Obviamente, devemos evitar aqui a fácil armadilha de colocar a culpa diretamente em Hollywood ou no “primitivismo ético” da Indonésia. Antes, o ponto de partida deveria ser os efeitos deslocadores da globalização capitalista que, ao solapar a “eficácia simbólica” das estruturas éticas tradicionais, cria esse vazio moral.
No entanto, a condição do “grande Outro” merece aqui uma análise mais cuidadosa – comparemos The Act of Killing a um incidente que chamou muito a atenção nos Estados Unidos há algumas décadas: uma mulher apanhou e foi lentamente assassinada por um criminoso violento no pátio de um grande prédio residencial no bairro do Brooklyn, em Nova York. Das mais de setenta testemunhas que viram claramente pela janela o acontecido, nenhuma chamou a polícia – mas por quê? Conforme estabeleceu a investigação posterior, a desculpa predominante, sem dúvida, foi que cada testemunha pensou que alguém já tinha chamado ou chamaria a polícia. Esses dados não devem ser descartados em termos morais como uma mera desculpa para a covardia moral e a indiferença egoísta: o que encontramos aqui também é a função do grande Outro – dessa vez não como o “sujeito suposto saber” de Lacan, mas como o que poderíamos chamar de “sujeito suposto chamar a polícia”. O erro fatal das testemunhas do lento assassinato do Brooklyn foi confundir a função simbólica (ficcional) do “sujeito suposto chamar a polícia” como uma afirmação empírica da existência, concluindo erroneamente que deveria haver pelo menos uma pessoa que efetivamente chamaria a polícia – elas sobrepujaram o fato de que a função do “sujeito suposto chamar a polícia” é operativa mesmo que não haja nenhum sujeito para exercê-la. [2]
Isso significa que, pela gradual dissolução da nossa substância ética, estamos simplesmente regredindo ao egoísmo individualista? As coisas são muito mais complexas. Muitas vezes ouvimos que a crise ecológica é resultado do nosso egoísmo de curto prazo: obcecados por riqueza e prazeres imediatos, nós nos esquecemos do Bem comum. No entanto, é aqui que se torna fundamental a ideia de Walter Benjamin sobre o capitalismo como religião: o verdadeiro capitalista não é um egoísta hedonista; ao contrário, ele é um devoto fanático da tarefa de multiplicar sua riqueza, pronto para desprezar a própria saúde e felicidade, sem falar da prosperidade da própria família e do bem estar do ambiente, para chegar a esse objetivo. Portanto, não há necessidade nenhuma de evocar a superioridade moral e detonar o egoísmo capitalista – contra a dedicação capitalista, fanática e pervertida, basta evocar uma boa dose de simples preocupações egoístas e utilitaristas. Em outras palavras, a busca do que Rousseau chama de amour-de-soi natural requer um nível altamente civilizado de consciência. Ou, colocando nos termos de Alain Badiou: ao contrário do que ele sugere, a subjetividade do capitalismo não é a subjetividade do “animal humano”, mas sim um chamado para subordinar o egoísmo à autorreprodução do Capital. Contudo, isso não é sugerir que Badiou esteja errado: o indivíduo preso no capitalismo global de mercado necessariamente percebe-se como um “animal humano” hedonista, interessado em si mesmo, e essa percepção de si é uma ilusão necessária.
Em outras palavras, o egoísmo do interesse próprio não é o fato brutal das nossas sociedades, mas sim sua ideologia – a ideologia articulada filosoficamente na Fenomenologia do espírito, de Hegel, quase no final do capítulo sobre a Razão, sob o nome de “das geistige Tierreich” – o “reino animal espiritual”, nome que Hegel dá à sociedade civil moderna na qual os animais humanos estão presos em uma interação egoísta. Como afirma Hegel, o avanço da modernidade foi permitir que “o espírito da subjetividade chegue à realização da extrema autonomia da particularidade pessoal”. [3] O reino desse princípio torna possível a sociedade civil como domínio em que os indivíduos humanos autônomos se associam uns com os outros para satisfazer suas necessidades pessoais: todos os fins comuns são subordinados aos interesses privados dos indivíduos, são conscientemente postos e calculados com a meta de maximizar a satisfação desses interesses. Aqui, o que importa para Hegel é a oposição entre privado e comum percebida por aqueles em quem Hegel se apoia (Mandeville, Smith), bem como por Marx: os indivíduos percebem o domínio comum como algo que deveria servir a seus interesses privados (como um liberal que pensa o Estado como protetor da liberdade e segurança privadas), porém, ao perseguirem seus objetivos limitados, eles servem efetivamente ao interesse comum. A tensão propriamente dialética surge aqui quando tomamos ciência de que quanto mais os indivíduos agem de modo egoísta, mais contribuem para a riqueza comum. O paradoxo é que quando os indivíduos querem sacrificar seus interesses privados limitados e trabalhar diretamente para o bem comum, quem sofre é o próprio bem comum – Hegel adora contar anedotas históricas sobre um príncipe ou rei bom cuja dedicação ao bem comum levou seu país à ruína. A novidade propriamente filosófica de Hegel foi ainda determinar essa “contradição” ao longo das linhas de tensão entre o “animal” e o “espiritual”: a substância espiritual universal, “obra de todos e de cada um”, surge como resultado da interação “mecânica” entre os indivíduos. Isso significa que a mesma “animalidade” do “animal humano” egoísta (o indivíduo que participa da rede complexa da sociedade civil) é resultado do longo processo histórico da transformação da sociedade hierárquica medieval na sociedade burguesa moderna. Desse modo, é a própria satisfação do princípio de subjetividade – o oposto radical de animalidade – que dá origem à reversão da subjetividade em animalidade.
Os traços dessa passagem podem hoje ser detectados em todos os lugares, especialmente nos países asiáticos de desenvolvimento acelerado onde o capitalismo exerce impacto mais brutal. A exceção e a regra, de Bertolt Brecht (peça didática escrita em 1929-30) conta a história de um rico comerciante que, com seu cule (carregador) cruza o deserto de Jahí (mais um dos lugares chineses fictícios de Brecht) para fechar um negócio de petróleo. Quando os dois se perdem no deserto e a água começa a acabar, o comerciante atira equivocadamente no cule, achando que estava sendo atacado, quando na verdade o cule estava lhe oferecendo água que ainda tinha na garrafa. Posteriormente, na corte, o comerciante é absolvido: o júri conclui que ele tinha todo o direito de temer uma ameaça potencial do cule, portanto ele estava justificado em atirar no cule como legítima defesa independentemente de haver ou não uma ameaça efetiva. Como o comerciante e o cule pertenciam a classes diferentes, o comerciante tinha todas as razões para esperar o ódio e a agressão – essa é a situação típica, a regra, enquanto a bondade do cule era a exceção. Não seria essa história mais uma simplificação marxista ridícula de Brecht? Não, a julgar pelo que nos mostra um relato verdadeiro e atual da China:
“Em Nanquim, há meia década, uma idosa caiu enquanto subia em um ônibus. Os jornais contam que a senhora de 65 anos quebrou a bacia. No local, um jovem foi ajudá-la; vamos chamá-lo de Peng Yu, pois este é seu nome. Peng Yu deu 200  ¥ para a senhora (na época, o suficiente para comprar trezentas passagens de ônibus) e a levou ao hospital. E continuou com ela até a chegada da família. A família moveu uma ação contra o jovem, pedindo 136,419  ¥. O tribunal do distrito de Gulou, Nanquim, efetivamente considerou o jovem culpado e ordenou que ele pagasse 45,876  ¥. O tribunal concluiu que, ‘segundo o senso comum’, como Pend Yu foi o primeiro a sair do ônibus, era praticamente certo que ele tivesse derrubado a senhora. Além disso, ele na verdade admitiu a culpa, segundo o tribunal, ao ficar com a senhora no hospital. Sendo assim, uma pessoa normal não seria tão gentil quanto Peng Yu afirmava ser.” [4]
Esse incidente não seria um paralelo exato à história de Brecht? Peng Yu ajudou a senhora por simples compaixão ou decência, mas como essa demonstração de bondade não é “típica”, não é a regra (“uma pessoa normal não seria tão gentil quanto Peng Yu afirmava ser”), ela foi interpretada pela corte como prova da culpa de Peng Yu, e ele foi punido de acordo. Não seria essa uma ridícula exceção? Nem tanto, de acordo com o People’s Diary (jornal do governo) que, em uma pesquisa de opinião realizada online, perguntou a um grande grupo de jovens o que eles fariam se vissem uma pessoa mais velha caída no chão: “87% dos jovens não ajudaria. A história de Peng Yu reflete a vigilância do espaço público. As pessoas só ajudam quando há uma câmera presente”. Essa relutância em ajudar sinaliza uma mudança na condição do espaço público: “a rua é um lugar intensamente privado, e aparentemente as palavras público e privado não fazem sentido nenhum”. Em suma, estar em um espaço público não implica apenas estar junto de pessoas desconhecidas – ao me mover entre elas, eu ainda estou dentro do meu espaço privado, não estou envolvido em nenhuma interação com elas, tampouco as reconheço. Para que seja considerado público, o espaço da minha coexistência e interação com os outros (ou com a falta deles) tem de ser coberto por câmeras de segurança.
Outro sinal dessa mesma mudança pode ser visto como a extremidade oposta de se observar as pessoas morrendo em público e não fazer nada – a recente tendência do sexo em público no ramo do pornô hard-core. Cada vez mais surgem filmes que mostram um casal (ou mais pessoas) envolvidos em jogos eróticos até chegar à cópula propriamente dita em algum espaço público bastante movimentado (em uma praia pública, dentro de um bonde ou trem, em um ônibus ou estação de metrô, na área aberta de um shopping center…), e o interessante é que a grande maioria das pessoas que passam ignora a cena (ou finge ignorá-la) – uma minoria olha discretamente para o casal, e menos pessoas ainda fazem uma observação obscena sarcástica. Mais uma vez, é como se o casal fazendo sexo continuasse no seu espaço privado, de modo que não devemos nos preocupar com sua intimidade.
Isso nos leva de volta ao “reino animal espiritual” – ou seja, quem de fato se comporta assim, ignorando moribundos na bendita ignorância ou transando na frente dos outros? Os animais, é claro. Esse fato de modo nenhum implica a conclusão ridícula de que estamos de alguma maneira “regredindo” ao nível do animal: a animalidade com a qual lidamos aqui – o egoísmo cruel de cada um dos indivíduos que busca seus próprios interesses – é o resultado paradoxal da rede mais complexa das relações sociais (troca comercial, mediação social de produção), e o fato de os próprios indivíduos estarem cegos para essa rede complexa aponta para o seu caráter ideal (“espiritual”): na sociedade civil estruturada pelo mercado, a abstração domina mais do que nunca na história da humanidade. Em contraste com a natureza, a competição do mercado de “lobos contra lobos” é, portanto, a realidade material do seu oposto, da substância pública “espiritual” que fornece a base e o pano de fundo para essa luta entre animais privados.
Costuma-se dizer que hoje, com a nossa exposição total à mídia, a cultura das confissões públicas e os instrumentos de controle digital, o espaço privado está desaparecendo. Devemos contrapor esse lugar-comum com a afirmação oposta: é o próprio espaço público que está desaparecendo. A pessoa que expõe na internet fotografias do próprio nu ou dados íntimos e sonhos obscenos não é exibicionista: os exibicionistas invadem os espaços públicos, ao passo que as pessoas que postam suas imagens de nu na internet continuam no seu espaço privado e estão apenas expandindo-o para acrescentar nele outras pessoas. E, voltando a The Act of Killing, o mesmo vale para Anwar e seus colegas: eles estão privatizando o espaço público em um sentido que é muito mais ameaçador do que a privatização econômica.

[1] Citado do material de publicidade distribuído pela Final Cut Film Production.
[2] Podemos até imaginar um teste empírico para essa afirmação: se pudéssemos recriar uma circunstância em que cada uma das testemunhas pensasse que observava sozinha essa cena grotesca, poderíamos prever que uma grande maioria delas teria chamado a polícia, apesar do cuidado oportunista de “não se envolver no que não é da sua conta”.
[3] G. W. F. Hegel, Elementos da Filosofia do Direito (Elements of the Philosophy of Right, Cambridge, Cambridge University Press, 1991, §260).
[4] Michael Yuen, “China and the Mist of Complicated Things” (texto cedido pelo autor).
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