Uma reflexão do Slavoj Žižek sobre alguns dos elementos de tensão que envolvem a atual ordem mundial capitalista. A fora alguns questões menos centrais, o maior equivoco do texto é a caracterização que faz sobre a América Latina, de resto é uma boa e profícua leitura da conjuntura, a luz das tensões que ocorrem na Ucrânia, seus desdobramentos e como se insere em uma possível reorganização global descolada de um centro hegemônico nos EUA.
Por Slavoj Žižek
Conhecer uma sociedade não é apenas saber suas regras explícitas. É também compreender como funciona sua aplicação: saber quando usar e quando violar as normas, saber quando recusar uma escolha oferecida e saber quando fingir que está se fazendo algo por livre escolha quando trata-se efetivamente de uma obrigação. Considere o paradoxo, por exemplo, das “ofertas-feitas-para-serem-recusadas”. Quando sou convidado a um restaurante por um tio rico, ambos sabemos que ele cuidará da conta, mas devo mesmo assim insistir em rachar ela – imagine minha surpresa se meu tio simplesmente dissesse: “Ok, então, pode pagar!”
Depois do colapso do poder soviético, um dos mais frustrantes aspectos do cotidiano para as pessoas comuns era que esse espaço de regras não-ditas tornou-se seriamente esfumaçado. As pessoas simplesmente não sabiam como reagir diante de regulações legais explícitas, o que podia ser ignorado, onde o suborno funcionava. (Uma das funções do crime organizado era justamente a de fornecer uma espécie de legalidade ersatz, substituta. Se você possuísse um pequeno negócio e um cliente o devia dinheiro, você ia ao seu protetor da máfia para lidar com o problema, já que o sistema legal do Estado era ineficiente.)
A estabilização da sociedade sob o regime Putin se deve em larga medida à transparência que se estabeleceu dessas regras não-ditas. Agora as pessoas compreendem novamente, de modo geral, o complexo emaranhado de interações sociais.
Não chegamos ainda a esse estágio no plano da política internacional. Na década de 1990, um pacto silencioso regulava a relação entre a Rússia e as grandes potências ocidentais. Os Estados ocidentais tratavam a Rússia como uma grande potência na condição de que a Rússia não agisse como uma. Mas e se o sujeito para quem a “oferta-feita-para-ser-recusada” realmente aceitar ela? E se a Rússia realmente começar a agir como uma grande potência? Uma situação como essa é propriamente catastrófica, ameaçando todo o tecido de relações existente – como ocorreu cinco anos atrás na Geórgia. Cansada de apenas ser tratada como uma superpotência, a Rússia de fato agiu como uma.
Como chegamos a isso? O “século americano” acabou, e entramos num período em que múltiplos polos do capitalismo global vêm se formando. Nos EUA, na Europa, na China e talvez na América Latina também, sistemas capitalistas desenvolveram com colorações específicos: os EUA representam o capitalismo neoliberal, a Europa o que resta do estado de bem estar social (Welfare State), a China o capitalismo autoritário e a América Latina o capitalismo populista. Com o fracasso da tentativa estadunidense de se impor como a única superpotência mundial – a policiadora universal –, há agora a necessidade de estabelecer as regras de interação entre esses polos locais no que diz respeito aos seus interesses conflitantes.
É por isso que nossos tempos são potencialmente mais perigosos do que podem parecer. Durante a Guerra Fria, as regras de comportamento internacional eram claras, garantidas pela loucura da Destruição Mútua Assegurada (MAD) das superpotências. Quando a União Soviética violou essas regras não-ditas ao invadir o Afeganistão, ela pagou caro por essa infração. A guerra do Afeganistão foi o começo de seu fim. Hoje, as novas e velhas superpotências estão se testando, tentando impor sua própria versão de regras globais, experimentando com elas através de proxies (guerras por procuração) – que são, é claro, outras pequenas nações e estados.
Karl Popper certa vez elogiou o teste científico das hipóteses, dizendo que, dessa forma, permitimos que nossas hipóteses morram ao invés de nós. Nos testes de hoje, as pequenas nações se ferem no lugar das maiores – primeiro a Geórgia, agora a Ucrânia. Embora os argumentos oficiais sejam altamente morais, girando em torno de direitos humanos e liberdades, a natureza do jogo é clara. Os eventos na Ucrânia parecem algo como “a crise na Geórgia, parte II” – a próxima etapa de uma luta geopolítica por controle em um mundo multipolar, não regulado.
Chegou definitivamente a hora de ensinar alguns modos às superpotências, velhas e novas. Mas quem vai fazer isso? Obviamente, apenas uma entidade transnacional poderá dar conta de uma tarefa como essa. Mais de duzentos anos atrás, Immanuel Kant viu a necessidade de uma ordem legal transnacional fundada na emergência da sociedade global. Em seu projeto para paz perpétua [Zum ewigen Frieden. Ein philosophischer Entwurf, 1795], ele escreveu:
“Avançou-se tanto no estabelecimento de uma comunidade (mais ou menos estreita) entre os povos terrestres que, como resultado, a violação do direito em um ponto da terra repercute em todos os demais, a ideia de um Direito Cosmopolita não é uma representação fantástica nem extravagante.”
Isso, no entanto, nos traz ao que é talvez seja a “contradição principal” da nova ordem mundial (se pudermos usar esse velho termo maoista): a impossibilidade de criar uma ordem política global que corresponda à economia capitalista global. E se, por razões estruturais, e não apenas devido a limitações empíricas, não puder haver uma democracia ou um governo representativo mundial? E se a economia global de mercado não puder ser diretamente organizada como uma democracia liberal global com eleições mundiais?
Hoje, em nossa era de globalização, estamos pagando o preço por essa “contradição principal”. Na política, fixações da era passada, e identidades particulares, étnicas, religiosas e culturais retornaram com força total. Nosso predicamento hoje é definido por essa tensão: a livre circulação global de mercadorias é acompanhada por crescentes separações na esfera social. Desde a Queda do Muro de Berlim e a ascensão do mercado global, novos muros começaram a emergir por toda a parte, separando povos e suas culturas. Talvez a própria sobrevivência da humanidade dependa da resolução dessa tensão.
Publicado em inglês no The Guardian. A tradução é de Artur Renzo, para o Blog da Boitempo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário