As hipóteses preliminares sobre o acidente com o avião da TAM no aeroporto de Congonhas são muitas. A grande maioria dos depoimentos – de controladores de vôo a testemunhas oculares na avenida que margeia o aeroporto, passando pelo de especialistas em segurança aeronáutica – aponta para a idéia de que, por alguma razão ainda desconhecida, os pilotos do avião tentaram arremeter para cima depois do aparelho ter tocado o solo.
As causas desse gesto podem ser muitas, de um defeito no avião a uma muito pouco provável aquaplanagem. Só a investigação dirá as causas, e também é pouco provável que se encontre uma única, deve haver uma conjugação, uma cadeia de acontecimentos que tenha determinado a tragédia.
Pouco importa: já se ergue o coro de bruxas e bruxos – menor desta vez, é verdade, mas não menos barulhento – de dedo em riste para o governo Lula e, é claro, para a pessoa do presidente. Não há novidade nisto. Se responsabilidade há no governo, até o momento, pode-se defini-la como não tendo ele a capacidade de expor a público que tem uma política consistente para efetuar as mudanças necessárias no setor. Repete-se o estilo do que aconteceu na política econômica: o governo dá a impressão de tergiversar, de contornar os problemas, como se na política o melhor fosse sempre o estilo da folha seca do grande Didi, que ao bater faltas fazia a bola contornar a barreira numa curva que enganava até os melhores goleiros.
Era necessário mostrar a vontade de inaugurar novas vias políticas para o setor: resolver o problema do estatuto (que deveria ser civil) dos controladores de vôo, reduzir ou pelo menos controlar os poderes da Agência Nacional da Aviação Civil (Anac), remodelar o mercado da aviação civil no sentido de racionaliza-lo em função da segurança, segurança em todos os sentidos, inclusive o da proteção aos direitos do cidadão.
E finalmente – last but not the least, como se diz em português corrente – discutir o que fazer com o aeroporto de Congonhas. Arquitetonicamente de linhas arrojadas para a época em que foi construído, Congonhas poderia ser um lindo museu da aviação brasileira, num país que tem a sua história povoada por vôos espetaculares, dos de Bartolomeu de Gusmão aos de Santos Dumont, dos de Saint-Exupéry e seu Correio Sul ao histórico vôo que, partindo de Congonhas, levou o corpo de Tancredo Neves para Brasília.
Mas Congonhas não pode ser o aeroporto mais movimentado do país, e portanto da América Latina. Ele comporta 12 milhões de passageiros por ano, mais do que a população de S. Paulo ela mesma (não de toda a mancha urbana), que beira os 11 milhões.
Congonhas foi construído numa época que nada havia à sua volta senão campos rasos, quando os vôos eram à hélice. Depois a especulação imobiliária cercou-o de residências, de edifícios e de comércio e de uma avenida que é das principais de S. Paulo em movimentação, o complexo 23 de Maio – Rubem Berta.
Quando se construiu o aeroporto de Guarulhos, Congonhas deveria se limitar aos vôos regionais, e às pontes aéreas São Paulo – Rio – Belo Horizonte – Brasília. Com o tempo os vôos foram se distendendo, chegando às outras capitais através dos vôos com escala em cidades de médio porte, como um vôo São Paulo – Caxias do Sul – Porto Alegre e vice-versa, Porto Alegre – Viracopos – São Paulo. Daí chegou-se ao passo dos vôos diretos para os grandes aeroportos do país, mesmo ao Norte, com escala em Brasília ou através do rosário de cidades do litoral.
Criou-se o vasto “mercado aeronáutico Congonhas”, movido, sobretudo, por três fatores. Primeiro, os vôos empresariais, do tipo em que o executivo sai de São Paulo de manhã e volta à noite, ou na manhã seguinte, a tempo de seguir para o trabalho. Com seu carro, de preferência. Segundo, os vôos políticos, entre São Paulo e Brasília e também outras capitais estaduais. Terceiro, o incômodo que é o deslocamento até o aeroporto de Guarulhos. Não há trens, há um serviço de ônibus caro que serve a poucos pontos da cidade (basicamente, o aeroporto de Congonhas, a Praça da República, o terminal rodoviário do Tietê e o Shopping Eldorado) e um de ônibus comum que vai até uma estação de metrô. Uma viagem de táxi de ou para Guarulhos custa uma fortuna; deslocar-se de carro através dos engarrafamentos gigantescos nas avenidas marginais, do centro da cidade, ou da Radial Leste é um suplício.
Ou seja, o fenômeno Congonhas, hoje situado no coração da maior cidade da América do Sul e uma das maiores do mundo, é uma excrescência histórica criada e alimentada pelo desregramento de vários mercados brasileiros: o da especulação imobiliária, o da especulação financeira, o dos transportes, o da especulação aeronáutica, e também o desregramento do consumo, provocado pelo império, neste complexo do imaginário, do consumidor em detrimento do direito do cidadão.
Essa é a causa de fundo (o desregramento, o império dos mercados) que precisa ser atacada.
Haverá coragem política para isso? É uma boa pergunta.
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