Por que ser contra o Estatuto do Nascituro


"Ser contra o Estatuto do Nascituro não é ser contra a vida."

Por Thaís de Souza Lapa


O tema aborto é complexo e permeado de conflitos: admitir a maternidade como uma opção e não uma obrigação é ainda imenso tabu e o controle social da função reprodutiva das mulheres é um dos pontos centrais de disputa em nossa sociedade. Neste contexto, grupos conservadores, sob o aparente interesse da proteção à vida, combatem qualquer medida que favoreça a escolha da mulher sobre sua reprodução, opondo-se inclusive a direitos já conquistados.

Uma estratégia recente destes grupos foi a proposta do Estatuto do Nascituro, que visa estabelecer direitos a embriões, com base na crença de que a vida tem início desde a concepção e na ideia equivocada de que o embrião é já uma pessoa. Tal projeto de lei (PL 478/2007) tramita na Comissão de Finanças e Tributação do Congresso Nacional, onde entrará provavelmente em pauta na próxima quarta-feira,05/06. Se aprovado, derrubará qualquer direito de a mulher decidir pela interrupção da gravidez, mesmo nas situações já garantidas por lei no país - casos que decorram de estupro, causem risco de vida da gestante ou quando os fetos têm anencefalia.


Ser contra o Estatuto do Nascituro não é ser contra a vida. É observar que o que está em jogo na discussão do tema aborto é a vida de um ser humano constituído e sujeito de direitos, a mulher. Nascituros não são pessoas, são vidas em potencial, e o direito à proteção jurídica da vida desde a concepção não existe em nosso ordenamento jurídico constitucional, nem nos tratados internacionais que o Brasil ratificou. Então, pode-se dizer que “nascituro” é criação para dar personalidade jurídica às convicções morais de homens que desejam controlar a reprodução das mulheres pela lei penal.

O projeto do Estatuto é equivocado não apenas por pautar-se em noções distorcidas sobre o que é “pessoa”, mas porque viola direitos humanos das mulheres, a Constituição Federal e o código penal. A Comissão de Bioética/Biodireito da OAB/RJ elaborou parecer identificando 14 equívocos/inconstitucionalidades do Estatuto do Nascituro, revelando violações ao direito de liberdade da gestante, à sua dignidade, autonomia, segurança e ao seu direito à saúde. O projeto legitima a violência contra a mulher, porque sujeita a vítima de violência sexual a desenvolver relações pessoais com o estuprador, dando ele direitos e obrigações da paternidade como pagar pensão, constar na certidão de nascimento e conviver com a criança. Além disso, enquanto o Estatuto propõe que o nascituro tenha “prioridade absoluta” no acesso às políticas públicas e receba uma “bolsa-estupro” de um salário mínimo até os 18 anos, a menina/mulher violentada, caso sobreviva ao parto, sequer é mencionada. Há mais inconstitucionalidades, como a proibição de pesquisas com células-tronco, de manifestação pública sobre liberalização do aborto e até do estudo do fenômeno.

O PL também fere o Estado Laico, que não pode ser instrumentalizado para privilegiar interesses particulares de doutrinas religiosas, mas deve garantir que ninguém seja impedido de acessar políticas públicas por conta de valores específicos/inconstitucionais. Países de maioria católica como Portugal legalizaram o aborto; o acúmulo feminista no debate prova que o problema do aborto não é de ordem religiosa, mas de discriminação de gênero (as mulheres são todas vulneráveis à criminalização dos abortos ilegais) e de classe social (as mulheres ricas têm ao menos condições de abortar de maneira segura, diferente das pobres).

Recentemente, a autorização de abortos de fetos anencéfalos e a posição dos Conselhos Federais de Psicologia e Medicina em favor da legalização do aborto marcaram avanços no tema. E há organizações mobilizadas contra o PL, como as que integram a Frente Nacional contra a Criminalização das Mulheres e pela Legalização do Aborto e Jornadas Pelo Aborto Legal e Seguro. Porém, para evitar retrocessos como a aprovação deste PL, o tema precisa ser apropriado por setores mais amplos de nossa sociedade que lutam contra a opressão e exploração de nosso povo. Não se trata de luta específica de feministas, mas de uma ameaça às mulheres brasileiras, agentes fundamentais na transformação social e que não podem ser sistematicamente subjugadas e terem seus direitos mínimos violados. Ser contra o Estatuto é luta de todos comprometidos com um projeto popular para o Brasil.
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Um comentário:

Apelido disponível: Sala Fério disse...

A análise de Thaís Lapa, como tantas outras que tenho lido, passa pela não leitura do projeto. Se lido, ficaria evidente que a lei pretendida não abole artigo do Código Penal que faculta à mãe ter ou não o filho, em caso de estupro e de risco. Se a premissa é falsa, as conclusões acabam sendo também.