Por Arthur Lima de Avila
Recentemente, em entrevista ao programa “Adnet ao Vivo”, veiculado pela MTV, o jornalista Leandro Narloch pôs-se a tecer certos comentários, travestidos de afirmações contundentes, sobre a história do Brasil e da América Latina. A mais nova estrela da mídia conservadora brasileira, Narloch, jornalista com passagem pelas revistas “Veja” e “Superinteressante”, busca, segundo ele, reescrever nossa a história a partir de um viés “politicamente incorreto”, atacando uma “história oficial” que supostamente privilegia os “vencidos” em detrimento dos “vencedores”. Dito de outro modo, ele busca criticar as histórias críticas surgidas nos anos 1970 e 1980 pela América Latina afora. O resultado disto foi dois livros, “Guia Politicamente Incorreto da História do Brasil”, que rapidamente adentrou as listas dos livros mais vendidos do país, e o “Guia Politicamente Incorreto da História da América Latina”, sua mais nova empreitada. No entanto, sem muito medo de errar, poderíamos simplesmente chamar os dois livros de “guias incorretos” sobre a história de nosso país e do subcontinente, tão grandes são os erros, interpretações problemáticas e afirmações descabidas neles contidos. Como o espaço é pequeno, contudo, focar-me-ei somente numa das mais tenebrosas conclusões de Narloch: a de que existiria uma equivalência entre o presidente chileno Salvador Allende e seu verdugo, o ditador Augusto Pinochet. Segundo o excelentíssimo jornalista, ambos seriam “picaretas”, com o agravante de que Allende teria “tentado instaurar uma ditadura comunista” no Chile. Desta forma, apesar de seus “métodos cruéis”, Pinochet teria salvado aquele país, corrigido os rumos de sua economia e afastado o temível fantasma de uma revolução marxista em terras chilenas.
Tais afirmações não são somente historicamente incorretas: são moralmente repugnantes. A crítica de Narloch a Allende é baseada em alguns silogismos: “Allende apoiou a eugenia; a eugenia é ruim; logo, a ditadura do Pinochet era justificada” ou “Allende era marxista; o marxismo é ruim; logo, a ditadura do Pinochet valeu a pena”. Cabem aqui alguns comentários. No primeiro caso, somente os ingênuos ou os néscios acreditam na pureza de todos os homens e mulheres. O apoio de Allende à eugenia é, sem duvidas, uma mácula em sua biografia, mas não é diferente do apoio dado por centenas de outros médicos a esta teoria no começo do século XX. Independente da coloração política de seus integrantes, diversos profissionais da medicina acreditavam que a eugenia era um método válido para a correção de supostos “erros genéticos”. Tanto o governo sueco quanto o norte-americano, para citar dois países democráticos, apoiaram e financiaram a aplicação da eugenia em sua população. Sem esta contextualização, o caso Allende não pode ser entendido. Talvez se Narloch estivesse mais preocupado em pesquisar seriamente do que em tentar criar polêmicas vazias, ele poderia ter oferecido uma interpretação mais equilibrada sobre este problema.
No segundo caso, a afirmação de que Allende teria “apoiado a instauração de uma ditadura comunista” no Chile é empiricamente errônea. Allende governou de acordo com a Constituição de seu país, recusando-se a romper com a democracia, mesmo quando pressionado pelos setores mais radicais da esquerda chilena (o MIR, por exemplo). As acusações de que Allende teria “rompido com a Constituição” vieram dos setores mais reacionários da política chilena – aqueles mesmos que, mais tarde, não teriam problema nenhum em fechar os olhos para as brutalidades do governo Pinochet. Aliás, em mensagem ao Congresso chileno de 24 de setembro de 1973, o próprio Allende respondeu a cada uma das vazias acusações contra seu governo, lembrando que elas não citavam nenhum caso específico de ilegalidades e que aqueles que o acusavam eram os mesmos a bater na porta dos quartéis para exigir a derrubada de um governo legítimo e democraticamente eleito – o futuro, aliás, daria razão a Allende, que, não custa lembrar, resistiu até o final contra o definitivo ataque à democracia chilena. Afirmar, portanto, que Allende queria instaurar uma “ditadura comunista” no Chile é cometer um erro histórico crasso – que seria facilmente corrigido por Narloch, caso ele tivesse se interessado em pesquisar seriamente sobre este assunto e não em repetir os bordões usados pela própria ditadura chilena para difamar a memória de Allende.
Neste caso, entretanto, tal erro é facilmente explicado pela tentativa de Narloch de socar os fatos históricos em uma leitura “politicamente incorreta” da história latino-americana que, na verdade, busca reabilitar interpretações conservadoras do nosso passado. O erro, contudo, ainda é menos grave do que a moral da história contada por Narloch. É simplesmente incabível comparar um governo eleito democraticamente com um regime militar ilegítimo e ilegal, sob qualquer argumento. Quantos morreram para que o Chile pudesse ter seu (discutível) “milagre econômico”? Quantos foram os torturados em nome da “salvação” do Chile de um “picareta”? Como um autor que se diz preocupado com a “liberdade” pode argumentar em prol da derrocada de um presidente eleito? A argumentação de Narloch esvazia a democracia e diminui o sacrifício de todos aqueles homens e mulheres que sofreram na pele e na alma os abusos do terror de Estado. Indo mais adiante: se levada in extremis, a argumentação de Narloch possibilita, inclusive, a reabilitação de Hitler, Franco e outros dos incontáveis ditadores da infame galeria de horrores do século XX.
Mas, infelizmente, tal irresponsabilidade moral não é gratuita – ela cumpre um propósito bem definido. A mensagem política, neste caso, é clara: diante do avanço de governos de esquerda no subcontinente; diante do avanço de novos movimentos sociais contestadores; diante do surgimento de novos atores históricos que exigem o fim de seu secular esquecimento; diante das tentativas de se punir aqueles que pisotearam nossas Constituições e instauraram a terrível e longa noite do autoritarismo; diante, enfim, do avanço da história, é preciso deslegitimar estas demandas com uma releitura do passado que dê chancela aos projetos políticos de uma direita cada vez mais enfraquecida e desesperada – e que não se conforma com os ataques aos seus privilégios, materiais e simbólicos. Portanto, não se enganem, caros leitores: apesar da propaganda, as interpretações de Narloch são vinho velho em pipa nova. Um vinho bastante amargo, diga-se de passagem.
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12 comentários:
Erick, gostaria da tua opinião: Não devemos nunca julgar o passado nunca? Por exemplo, devemos entender o contexto da eugenia, do marxismo, das ditaduras de direita? Nada contra, inclusive, eu faço isso, mas se deve se manter uma coerência, não xingar um lado e deixar o outro como mito bom. Sou contra mitos, acho que não deveríamos vangloriar nenhum político, afinal, todos erram, deveríamos apenar estudar a história sem ideologias. Obrigado e espero por sua resposta.
Veja bem Guilherme, a história deve sim ser estudada e avaliada a luz dos fatos e seus desdobramentos. Mitos, sejam eles quais forem, estão aí para serem questionados e desmistificados, mas nesta análise não podemos ignorar a história e o contexto social que deram origem a essas figuras, o que o livro em questão não faz.
O que o Narloch fez em seus dois livros não foi uma "história sem ideologias", primeiramente, por ser algo impossível (o positivismo, por ex. defendia isto, mas na prática, ela própria se converteu em uma doutrina política), a neutralidade na ciência é um mito perverso que em nada colabora para um bom desenvolvimento da análise histórica. Por outro lado, Narloch, do ponto de vista historiográfico é um desastre e não consegue disfarçar sua nítida opção política conservadora, que em última análise, demonstra um desconhecimento da história pelo autor e, em muitos casos, puro preconceito.
A repulsa que os autores sentem pelas culturas latino-americanas é notória e se faz notar em pequenos detalhes. Dizem, por exemplo, que mexicanos são exóticos porque celebram o Dia dos Mortos saindo às ruas para se divertir com esqueletos. Alguma explicação sobre como surgiu essa tradição, qual o tamanho da festa e o que ela significa para o povo mexicano? Nada. É coisa de quem provavelmente sai muito pouco do próprio bairro.
Enfim, espero ter colaborado com o entendimento do que está em questão neste péssimo livro do Narloch.
Sds
Mas Erick, o próprio Narloch disse que seu livro não deve ser estudado na escola porque é parcial, de direita e tal, disse que é para questionar os mitos que existem. Óbvio que para um historiador não terá nenhuma novidade ali, mas como o Narloch disse, é para rebater os mitos criados na AL. Acabei de ler uma crítica na Folha que criticava os autores por não saberem a história argentina, mas ela mesmo errou ao dizer que o Brasil não teve conflitos internos pela independência. Outra frase da crítica na folha: "Um presidente é fruto de um contexto. Perón teve amplo apoio popular e de parte da elite." Olha, se formos pensar assim, jamais poderemos condenar nenhuma atitude política, não é mesmo? Obrigado.
E ah, Erick, quando me referi a sem ideologias não foi a fingir que não tenho visão, mas estudar o que aconteceu e avaliar a partir disso, não jogar a ideologia e depois montar os fatos.
Sem dúvida, apoio popular, por si só, não resolve a questão. O problema (e o perigo) de um livro como este do Narloch é que, não desmistifica verdadeiramente os mitos, tenta com relação a alguns supostos mitos da "esquerda" mas não os da "história oficial" como ele apregoa. E, principalmente, a grande maioria do público leitor do seus livros não necessariamente farão um juízo crítico adequado do conteúdo das obras. Um livro que vende 200 mil edições, apresentando graves problemas como os dele, deixa de ser "apenas um livro de direita" e deve sim ser analisado e criticado em suas graves lacunas.
Do contrário, estaremos deformando toda uma parcela significativa de leitores que, por desconhecimento, muitas vezes pode "comprar" a versão do Narloch como "verdade", algo que considero bastante problemático.
Erick, outra coisa: acabei de ver no twitter paródias do "guia politicamente incorreto", uma delas dizia: "Guia politicamente incorreto da África: negros escravizavam negros". Bem, isso de fato ocorreu, você acha que deve ser esquecido da história ou lembrado? E acho que o problema já começa na escola, onde muitos mitos nos são ensinados, por isso que livros como esse acabam vendendo tanto. Obrigado, Erick.
Eu tenho o livro. O Narlocha, que faz história nas coxas, é um dos bobos da corte da direita. Faz piadinhas com os nossos ideais. O dele é só ganhar dinheiro, não importa como.
Como autor do texto, gostaria de dar meu pitaco.
Em primeiro lugar, como o Erick disse, história sem ideologia não é história. Qualquer representação do passado carrega consigo um projeto de presente e de uma visão de futuro. Assim, minha interpretação sobre o Allende parte de uma determinada posição.
Tendo dito isto, o que me preocupa são as profundas simplificações e conclusões do Narloch. Negros tinham escravos na África. Ok. Isto torna a escravidão mercantil das Américas menos cruel? Claro que não. Allende foi favorável à eugenia, ao menos na teoria? Sim. E daí? Isto torna o Pinochet um cara legal? Evidente que não.
Este tipo de silogismo "narlochiano" é absurdo, pois retira qualquer complexidade do processo histórico e de suas representações escritas.
Além disso, o Narloch comete erros factuais grosseiros, resultado de preconceito. O exemplo do Erick sobre o Dia dos Mortos é ótimo, nesse caso.
Parabéns para o texto do Arthur, talvez o melhor historiador que eu conheço pessoalmente. É preciso ao menos lembrar que o sujeito em questão não é historiador (e, portanto, não tem compromisso com métodos e fontes historiográficas) e que seu politicamente incorreto é um eufemismo para ultra-direita. Sua estratégia de "avacalhar" com tudo desrespeita os fatos e a história, com todas as contradições que ela possa ter.
Esse narloch é um reacionário sem igual!
Algo que muito me incomodou nas entrevistas dele na tevê foi ele ter dito que a América estava por muito tempo isolada dos outros continentes que estavam mais avançados por compartilharem conhecimento e que o que ocorreu há 500 anos atrás não foi uma exploração foi a reunião de povos que a milhares de anos tinham se separados(era glacial os separou)-até disse que é emocionante- e agora podiam trocar conhecimento. Vocês viram por acaso, na história a Europa incorporando a cultura Latino-americana original de forma tão significativa quanto nós fizemos com a dela?
Bom, eu realmente achei que não teria nenhuma novidade nesse livro pra quem estuda história, mas e pra quem não estuda?
Que leituras vocês recomendam pra alguem que não é da área?
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