A esquerda e a República
Por Juarez Guimarães
Há quase certamente apenas coincidência no fato de que a denúncia feita por um jornal de oposição envolvendo o ex-ministro da Casa Civil e articulador político do governo Dilma Rousseff ter acontecido às vésperas da primeira grande prova de votação da bancada governista na Câmara Federal, a votação do Código Florestal.
Será possivelmente coincidência também o fato desta votação ter exposto a mais forte área de comunicação entre a bancada peemedebista e a bancada da oposição, aquela que organiza os interesses do agronegócio, a bancada ruralista. Mero acaso – “são crimes comuns”, chegou a afirmar a líder da bancada ruralista, Katia Abreu – também a seqüência de assassinatos de lideranças agrárias ecológicas após a vitória parlamentar dos desmatadores. Última coincidência também o fato de o PTB, chefiado pelo indefectível aliado de Fernando Henrique Cardoso, Roberto Jefferson , ter lançado simultaneamente na TV brasileira uma campanha contra o financiamento público de campanha sob o lema “Não dê dinheiros aos políticos corruptos”.
O que importa aqui não é a sedução de uma análise conspirativa da política – mesmo que se suponha ser verdade que há uma inteligência estratégica legítima a guiar os passos do centro político da oposição – mas a lógica comum que ata estes quatro fatos concentrados na mesma cena: o enfraquecimento ou desmoralização do princípio do público desata a sanha e a fúria incontrolada dos interesses privatistas e razões liberais. É esta relação entre a esquerda brasileira - suas identidades e seus programas – e os valores republicanos que é o grande enigma a ser decifrado.
Por que, depois da grande crise de 2005, poucos meses após a queda de outra ex-ministra da Casas Civil, no momento mais decisivo da campanha de Dilma Rousseff à Presidência, um episódio assim pateticamente tão indefensável segundo princípios da mais básica moralidade pública vem ferir justamente aquele nomeado para ser o articulador político do governo? Qual é mesmo a razão desta desinteligência, deste mal-entendido, desta consciência política às avessas, enfim, valha-nos o poeta, deste tão claro enigma?
Há uma primeira resposta a este enigma, que vem justamente da razão liberal informada, aquela de Fernando Henrique Cardoso e agora renovada na voz candidata de Aécio Neves, que consulta a lógica dos interesses: seguindo o caminho desencantado da análise de Weber, a utopia petista faz muito tempo cedeu lugar à sanha dos “novos ricos do poder”. O petismo no governo, no seu estatismo incontrolado, apenas faz alargar o campo de oportunidades para a corrupção e para os bolsos da “companheirada”.
Ninguém há de negar, a esta altura, que a problemática é real na vida política brasileira. A prova mais evidente é exatamente toda uma geração de intelectuais e políticos do PSDB que ganharam o “céu dos ricos” exatamente utilizando o estado para servir mais ao capital, em particular o financeiro.
Há um segundo campo de respostas a este enigma que busca a explicação exatamente na estratégia pragmática do sucesso eleitoral do PT: o partido aprendeu a se virar na dura luta competitiva de grandes interesses privados que dominam a competição eleitoral no Brasil, organizada sob o signo do financiamento privado milionário das campanhas. O preço a pagar pelo sucesso deste pragmatismo é justamente o de perder o sinal de diferença entre a identidade socialista ou dos trabalhadores proclamada e os interesses reais a defender ou conciliar, apagar a linha que separa o interesse privado regulado do interesse privado privilegiado.
De novo, é muito difícil negar que este diagnóstico é descabido: é ele aliás que, para um conjunto de cientistas políticos, torna a adoção do financiamento público de campanha um tema prioritário da reforma política.
A razão que concede a prioridade explicativa à vigência dos interesses sobre os valores e identidades ou aquela outra que dirige o olhar para a força do pragmatismo eleitoral convergem, no entanto, para uma aposta não resolvida: a de que o PT menos transformou do que foi transformado pelo estado brasileiro, a de que seus quadros principais deixaram de ser orgânicos aos trabalhadores e pobres brasileiros para serem arrivistas do poder e de fortunas, de que o império do pragmatismo se impôs definitivamente ao seu princípio de identidade.
Não é esta, porém, a compreensão da grande maioria dos eleitores brasileiros sobre os governos Lula e o PT continua sendo, de longe, o partido de maior preferência dos trabalhadores e dos pobres. Não se conhece nenhum trabalho de ciência política, que bem fundamentado conceitualmente e empiricamente comprovado, revele o diagnóstico de que o PT tornou-se um partido igual ao PSDB, PMDB ou DEM, embora haja, é certo, larga evidência de alguns traços comuns.
Identidade socialista e republicanismo
Acreditamos ser possível formular uma terceira hipótese plausível e com maior potência heurística sobre as duas razões anteriores, a dos interesses e a pragmática, para explicar os desencontros entre o PT e os valores republicanos. Dotada de maior força explicativa exatamente porque contém, mas supera em um juízo histórico mais amplo e equilibrado as duas hipóteses anteriores.
Os desencontros entre o PT e os valores republicanos ocorrem porque ele ainda não formou, de forma plena, em sua cultura, sua identidade e seu programa o encontro entre seus valores do socialismo identitário original e os valores do republicanismo a serem constituídos no Estado brasileiro.
Na ausência desta fusão programática, entre a identidade socialista original e a política brasileira tal como se dá, cria-se um hiato, uma tensão não resolvida e ate mesmo uma contradição. As lógicas dos interesses particularistas e os cálculos do pragmatismo eleitoral, então, encontram espaço aberto para fazer entrada e se desenvolver.
O PT formou-se na cultura do socialismo democrático por ter aprendido o valor fundamental da liberdade nas lutas contra a ditadura militar e ter formado a sua cultura de esquerda em um período tardio, já de avançada desestalinização no plano internacional e na vida política brasileira. Esta jovem razão socialista democrática foi às urnas e quase venceu as eleições para presidente em 1989.
Desde então, por sua própria lógica política, ela se distendeu, se alargou e, em alguma medida, se conformou à disputa pelo voto das maiorias. Tornou-se, enfim, governo nacional e teve que aprender, em duríssimas provas que levaram a sua tradição quase à ruptura, a governar sob as regras e leis democráticas de um estado que é imperfeitamente republicano em dimensões fundamentais e anti-republicano ainda em outros fundamentos essenciais.
Identidades, lideranças, estruturas partidárias, fundamentos de financiamento, programas e identidades foram mobilizados para o esforço de ser governo à esquerda em uma conjuntura mundial adversa, em um país de uma complexidade que exaure a inteligência, minoritário no Congresso Nacional, nos governos estaduais mais importantes, sob o ataque impiedoso dos grandes meios empresariais de comunicação.
Que este esforço governativo tenha implicado em um certo padrão de adaptação às regras precariamente republicanas, semi-republicanas ou até anti-republicanas do estado brasileiro era mais que provável.
A cultura política brasileira sempre foi escassamente formada por valores republicanos. A soberania popular tardou muito a chegar. O interesse público não se fez raiz nem formou padrões. O liberalismo brasileiro, já muito cedo, no século XIX, adaptou-se aos padrões patrimonialistas, escravistas e patriarcais. Quando organizou o estado à sua semelhança, na República Velha, oligarquizou o poder, criminalizou a questão social, erodiu o pacto federativo, aprofundou a dependência econômica.
Recorreu aos quartéis contra a dinâmica ascendente do nacional-desenvolvimentismo e formou as suas grandes estruturas econômicas contemporâneas – a grande finança, a grande empresa, as empresas de comunicação, o agro-negócio – com base nas políticas autocráticas da ditadura militar.
Retornamos à democracia, pela via da transição liderada pelos conservadores liberais, em meios aos escombros da República. A eleição de Collor e o que se seguiu, os anos neoliberais, corroeram ainda mais o nosso frágil mundo púbico em formação.
Pela terceira vez no governo da nação, o PT precisa agora formar a sua consciência e o seu programa de estado republicano, afim aos seus valores de democracia, justiça e solidariedade. Em tempos regressivos da cultura liberal, em que se recua até do padrão keynesiano de gestão na Europa e nos EUA, o coração da razão pública é dramaticamente esquerdo.
*Juarez Guimarães é cientista político, professor da UFMG.
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