Entrevista com Slavoj Zizek



Uma entrevista indispensável concedida a Folha com o filósofo e psicanalista esloveno Slavoj Žižek, um dos principais pensadores de esquerda da atualidade. Zizek estará vindo ao Brasil em maio de 2011, para conferência de lançamento no país dos livros Em defesa das causas perdidas e Primeiro como tragédia, depois como farsa, ambos pela Boitempo Editorial.

Folha - No livro "Em Defesa das Causas Perdidas", o sr. defende a "hipótese comunista", uma alternativa ao capitalismo, e fala em ditadura do proletariado. Essa terminologia não gera resistência?
Slavoj Zizek - Quero deixar claro que o comunismo do século 20 está morto e que não sou um ingênuo que acredita num grande retorno do Partido Comunista. O stalinismo foi a materialização do horror. Defendo o uso desses termos porque qualquer conservador moderno de direita sai por aí dizendo que precisamos de mais solidariedade.
Por outro lado, são termos que se referem à memória coletiva da humanidade e remetem a momentos em que existiram explosões populares igualitárias verdadeiras. Não se trata de repetir o modelo fracassado, mas de preservar o momento em que foi possível ter a liberdade de pensar e agir segundo a ideia de que o capitalismo não é um fato dado.


Um de seus argumentos para defender o comunismo é a questão da propriedade intelectual. Por que diz que o conceito de conhecimento é comunista?
O conhecimento é naturalmente comunista, o que quer dizer que já inclui a ideia de algo feito para ser compartilhado. E isso não pode ser transformado numa "commodity" de mercado. Vamos pensar em apenas dois exemplos importantes: a propriedade do patrimônio biogenético e ecológico, incluindo aí todas as recentes descobertas científicas, o genoma etc.
Estamos falando do controle privado da nossa substância genética e do ambiente em que vivemos. O conhecimento é nossa substância simbólica e pertence a todos, não pode ser de grupos privados. Outro dia, um grupo de estudantes me pediu originais de um livro meu para "pirateá-lo" entre os colegas. Atendi imediatamente.

Em "Primeiro como Tragédia, Depois como Farsa", o sr. fala que a crise de 2008 foi um embuste que revelou novas formas de colonialismo. Que formas são essas?
A crise de 2008 foi uma farsa no sentido de que foi um reflexo esperado das medidas tomadas nos EUA em 2001 --redirecionar o foco das empresas de internet que estavam falindo para o mercado imobiliário. É claro que a bomba estourou, mas a novidade é que essa crise planejada afetou os países muito seletivamente.

O Brasil passou bem pela crise...
Lula entendeu algo muito importante, que a esmagadora maioria da esquerda mundial não entende: o capitalismo de hoje não é um sistema hegemônico. Está cheio de inconsistências e divisões internas. A crise de 2008 foi uma crise do capitalismo global, mas, ao mesmo tempo, nos mostrou que estamos entrando numa era multicêntrica. Antes, se as economias norte-americana e dos principais países europeus iam bem, tudo ia bem. Agora, as coisas mudaram.
Isso pode ser bom por um lado, pois podemos pensar que o imperialismo norte-americano não é mais tão poderoso. Mas também traz um novo perigo: já podemos falar da emergência do colonialismo econômico chinês. A China patrocina governos corruptos locais para poder explorar recursos minerais, por exemplo, e manter seu lugar de destaque no mercado.
Aqui, queria fazer um parêntese e uma crítica a Lula. Talvez para mostrar que o Brasil não é mais dependente dos EUA, ele apoiou Mahmoud Ahmadinejad quando as eleições foram contestadas no Irã. Para mim, foi um erro terrível.

A seu ver, Lula deveria ter apoiado o outro lado?
Sim! Mir Hossein Mousavi, o candidato que foi roubado nas eleições, não era mais um liberal pró-ocidental oportunista. Na verdade, representava a verdadeira alternativa democrática: veio da revolução liderada por Khomeini [levante islamista que derrubou a monarquia no Irã em 1979].
Mousavi estava no caminho dos levantes que começaram recentemente no Egito e na Tunísia, fenômenos nos quais tenho alguma esperança. Ninguém esperava isso: que exatamente nos países árabes tivéssemos movimentos democráticos emancipatórios desse tipo.

Por que países como a França e a Inglaterra ficaram tão reticentes quanto ao levante no Egito?
O discurso norte-americano e da Europa Ocidental foi sempre o seguinte: as intervenções nos paí¬ses árabes acontecem no sentido de evitar levantes fundamentalistas e estimular a liberdade, a luta pela democracia etc. Muito bem: é exatamente isso o que aconteceu no Egito, e eles não ficaram contentes, mudaram o discurso. Mas de fato há razões para que eles fiquem assustados.
O que está acontecendo no Egito não é simples. Não se trata apenas de um "queremos ser uma democracia liberal". As pessoas no Egito estão lutando por algo diferente, por algo novo.
O importante é o que acontece no que chamo de "o dia seguinte", ou seja, como as reivindicações são institucionalizadas em uma nova ordem.

E como lê a situação da Líbia?
O episódio Gaddafi não traz nada de novo. É a repetição da fórmula que inclui intervenção militar, envio de ajuda humanitária etc. Ou seja, é um episódio que pode ser lido dentro da lógica da guerra ao terror americana. A Líbia não vive nada realmente novo, ao contrário do Egito.

O sr. estabelece uma relação direta entre capitalismo e bullying. Por que esse último se transformou numa espécie de paranoia mundial?
O paradoxo é o seguinte: de um lado, temos a permissividade capitalista, e do outro, uma sociedade mais regulada do que nunca. Ou seja, em princípio, não há regras rígidas a serem seguidas, mas, ao mesmo tempo, tudo o que você disser ou fizer pode ser apontado como ofensa ou ameaça.
O cerne da questão trata do velho problema cristão de "amar o próximo". Cada vez mais, nosso próximo é percebido como ameaça em potencial. Isso tem ligação direta com a política do medo pós-11 de Setembro. Com a desculpa de proteger a população de possíveis novos atentados, os níveis de vigilância chegaram a patamares absurdos, liberdades foram cassadas e o clima de pânico, instaurado. A verdade é que, apesar de todo o discurso liberal, vivemos numa das sociedades mais controladas de todos os tempos.
Existe algo muito errado com essa subjetividade ultranarcisista que está surgindo desse cenário. Temos de falar de um exemplo muito importante: o ato sexual apaixonado está sendo abandonado. O último filme de "James Bond", por exemplo, "Quantum of Solace" (2008), é o primeiro da série em que não existe uma cena de sexo entre Bond e a "Bond girl". Em "O Código da Vinci" também não há sexo, embora o ato sexual exista nos romances que deram origem ao filme.
A indústria do cinema sempre teve o papel de acrescentar sexo aos roteiros para torná-los mais atraentes. Então, em que espécie de mundo estamos quando Hollywood precisa retirar o sexo dos filmes? Estamos falando de uma economia de relações baseada no medo.

O sr. tem batido muito na tecla da "farsa ecológica" alimentada pela culpa das elites. Não existe de fato uma ameaça ecológica?
Existem problemas graves, é óbvio, mas as soluções para eles não estão nas "ecobags" ou noutra idiotice desse tipo. Entre as classes média e alta, é chique dizer que você é "consciente", que recicla lixo e se preocupa com o ambiente. Isso é imbecilidade, me desculpe.
É praticamente uma superstição, algo que tira a sua culpa e faz você se sentir bem. Os ecologistas radicais são os maiores críticos desse tipo de ritual da elite, eles chamam isso de "lifestyle" ecologista e pesquisas provam que o impacto positivo desse tipo de atitude no cenário global é irrelevante.

Nos livros "Em Defesa..." e "A Visão em Paralaxe", o sr. aponta as favelas como foco potencial de ideias de organização revolucionárias. Não há também uma idealização dos favelados?
Sim, é claro. Não se trata de idealizar os pobres como vítimas boa¬zinhas. Meus amigos intelectuais do Rio queriam me levar num desses passeios turísticos pelas favelas cariocas, uma coisa horrível. O que penso é que nas favelas há a organização dos que foram ou ainda são excluídos pelo poder público. É claro, há o tráfico e as igrejas que suprem essa falta, mas isso pode mudar. As favelas não precisam de caridade, precisam de alianças.
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Um comentário:

Miguel de Oliveira Frozza disse...

Muito boa entrevista do Slavoj Žižek.