O século inquieto. O Brasil do século XX buscou definir para si um novo perfil. Deixou para trás o imobilismo do império escravocrata que predominou no século XIX. Tornou-se uma sociedade dinâmica. Injusta, mas dinâmica. Buscou despedir-se da chaga da escravidão e das heranças rurais oligárquicas, mas não venceu o coronelismo; proclamou a República, mas não a realizou culturalmente; buscou tornar-se um país urbano industrial, mas não escapou de permanecer uma economia agro-exportadora; buscou tornar-se contemporâneo do mundo, mas arrastou consigo os ossos de instituições e comportamentos herdados dos séculos anteriores; sonhou com a democracia, mas cresceu sob ditaduras; sonhou com a igualdade, mas produziu uma fratura exposta entre os ricos e os pobres; hoje adota o discurso da sustentabilidade socioambiental, mas ainda cresce depredando os recursos naturais.
Nosso povo reencontrou o caminho do desenvolvimento, depois de duas décadas de estagnação, quando derrotou a perspectiva neoliberal nas eleições de 2002 e elegeu, depois de quatro tentativas, o metalúrgico Luiz Inácio Lula da Silva, Presidente da República. Não é tarefa simples despedir-se da perspectiva de desmonte do estado que prevaleceu desde a posse de Collor até o final do governo FHC, com o breve intervalo, do governo Itamar. Em uma década estabeleceu-se uma sólida cadeia de interesses econômicos e políticos que moldou uma estratégia de desenvolvimento assentada no mercado – organizada a partir do capital financeiro – que traçou, para o país, um modelo de desenvolvimento em que o Brasil desempenhava um papel subalterno no contexto mundial, um papel de plataforma de exportação, a exemplo do que ocorrera com os tigres asiáticos na década anterior. Tais interesses se organizaram em torno dos partidos conservadores – PSDB e DEM – e dos meios de comunicação que gravitam em torno deles para se opor à nova perspectiva encarnada por Lula e que agora se projeta na candidatura Dilma.
Não é mais possível pensar o Brasil como um tigre asiático, como imaginaram os neoliberais. Economias como Coréia ou Singapura, por mais dinâmicas que sejam não podem servir de modelo para nós. A partir de 2006 essa agenda foi vencida. O Brasil é um gigante, em todos os sentidos, e como gigante dever ser pensado. Coube ao governo do Presidente Lula repor na agenda os desafios para o Brasil voltar a se pensar como nação, e não apenas como mercado. Ou como plataforma de exportação. Tais desafios exigiram novas formulações e a retomada daquilo que Celso Furtado, um dia, chamou de “A Construção Interrompida”. Retomar o desenvolvimento e, ao mesmo tempo, redefini-lo. Recuperar a experiência dos ciclos de desenvolvimento anteriores e superá-las criticamente: crescer, mas crescer com democracia; crescer, mas com inclusão social e combatendo as desigualdades regionais; crescer com base na consolidação de um mercado interno de massas; crescer, mas utilizando racionalmente os recursos naturais, atentos ao compromisso com as gerações futuras.
Oito anos passados, o governo do Presidente Lula, lançou os alicerces para mudar a face do Brasil. Hoje, avançamos as conquistas democráticas; recuperamos o papel do Estado como indutor do processo de desenvolvimento; combatemos a pobreza e incluímos vastos setores sociais ao mercado interno de bens e serviços; democratizamos o acesso aos fundos públicos para amplos setores da sociedade; e afirmamos com altivez e objetividade nossa soberania nas relações com outros países do mundo.
Vencida essa etapa, o futuro imediato nos desafia. O pensamento brasileiro ainda levará algum tempo para decifrar e definir esse fenômeno chamado nova classe média. Mas, para a esquerda, não há grande dificuldade em identificar que o processo conduzido pelo Presidente Lula nos últimos oito anos, que resultou na emergência econômica e social desses trinta e dois milhões de brasileiros, não foi acompanhada por um processo de disputa de valores culturais. Celso Furtado, ele mais uma vez, advertia que a evolução da economia nos dá conta do bem-estar material de uma nação, mas é a cultura que define sua qualidade. Dito de outro modo: não basta crescer, é indispensável incorporar novos valores ao desenvolvimento. Conferir a ele novas dimensões: a proteção e o estímulo a um patrimônio ímpar – nossa diversidade cultural – e incorporar a sustentabilidade socioambiental ao novo ciclo.
Para tanto é necessário definir claramente o papel do Estado como indutor do novo ciclo de desenvolvimento. Não apenas com políticas voltadas para os indispensáveis investimentos em infra-estrutura que garantam a oferta adequada de alimentos e energia para garantir o bem-estar de todos os brasileiros. Não apenas com o aprofundamento das políticas de inclusão social e combate às desigualdades regionais. Mas, também, como condição inseparável da nova qualidade do desenvolvimento, investir na universalização das políticas públicas de Educação, Ciência, Tecnologia e Inovação; nas políticas públicas de Cultura; e à democratização dos meios de comunicação, sem a qual não há política publica de cultura que seja conseqüente.
A perspectiva que se desenha com a vitória de Dilma Rousseff sobre José Serra e seus aliados é que seguiremos aprofundando as conquistas democráticas e populares do governo Lula. Independentemente da vontade desta ou daquela corrente ideológica, nessa nova etapa se montará o cenário da disputa em torno em torno dos valores culturais. De um lado, valores assentados no elitismo, no preconceito, no individualismo, no consumismo estimulado e disseminado pelos meios de comunicação, de outro, valores tão antigos e tão presentes na história humana. Valores permanentes. Contemporâneos: os valores da cidadania portadora de direitos, os valores da proteção social aos mais frágeis, os valores da solidariedade, da tolerância cultural com as diferenças e com os diferentes, da utilização racional dos recursos naturais, os valores da soberania e da paz.
Mas, tais valores, não serão tratados abstratamente, nessa disputa. Serão materializados em políticas públicas. Dito de outro modo, vão demandar reformas no estado brasileiro que permitam acesso aos fundos públicos por amplos e novos setores sociais. Os orçamentos públicos, no Brasil, foram historicamente mantidos sob monopólio pelos segmentos mais ricos da população. Esse monopólio se rompeu com o governo do Presidente Lula. Trata-se agora de construir, consolidar e institucionalizar critérios republicanos de gestão e romper definitivamente com a cultura oligárquica que herdamos. Na sua forma tradicional (DEM) ou na sua forma pretensamente “moderna” (PSDB). Os claros sinais de desespero da direita nessas últimas semanas de campanha eleitoral significam basicamente que se encerra um ciclo no longo e penoso processo da transição democrática da sociedade brasileira.
*Pedro Tierra (Hamilton Pereira) é membro do Conselho Curador da Fundação Perseu Abramo
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