Seleção brasileira: o "patriotismo de chuteiras"
Dunga apela e quem discorda é antipatriota
Luiz Felipe Albuquerque
Já em 1950, Nelson Rodrigues, inspirado pela derrota do Brasil para o Uruguai na final da Copa do Mundo de futebol, profetizava a célebre frase em que resumia o senso de inferioridade da população brasileira: “o complexo de vira-lata”. No entanto, bastaram apenas oito anos – com a conquista do primeiro mundial pela seleção brasileira – para que tais aflições tivessem seu papel invertido, tornado-se hegemônico “o complexo de Pit Bull”.
Movido por um sentimento patriótico exacerbado pouco visto em outros momentos no Brasil, os períodos de Copa do Mundo evidenciam o forte sentimento criado sobre um imaginário que se estabelece, confundindo-se a seleção brasileira de futebol com a própria nação.
Com as identidades nacionais construídas a partir de processos históricos, como normalmente ocorre com grande parte dos outros países, no Brasil, a cristalização da identidade patriótica concentra-se, sobretudo, num outro aspecto: o futebol.
“O Brasil não tem um grande sentimento de nacionalismo a não ser em época de Copa do Mundo. A bandeira e o hino, que são dois símbolos maiores de um país, ficam meio esquecidos nos anos de intervalo entre as copas. Mas é nesta época que o sentimento de brasilidade aparece. Em outros países são exemplos da história do país (que formam a identidade nacional). Mas, para nós, são exemplos da história do futebol do país”, comenta o professor de história da Universidade de São Paulo, Hilário Franco Júnior, apontando para a confusão criada entre o que é a seleção e o que é a nação.
Numa necessidade intrínseca ao ser humano de se configurar como um indivíduo pertencente a uma comunidade de interesses, a um grupo de referência, o processo de construção e afirmação dessas identidades acaba se baseando em tradições capazes de reafirmarem um sentimento único de grupo social.
No caso brasileiro, por exemplo, nada mais propício do que apelar para o maior esporte do mundo, praticado e adorado em todos os continentes, e que, acima de tudo, somos considerados os melhores. No caso, o futebol.
Como salienta Hilário, “isso que acabamos chamando de patriotismo, me parece uma deturpação e uma deformação do que geralmente é em outras culturas, a relação do cidadão com seu país, tendo orgulho de feitos do país. Como nós não temos feitos nenhum, transferimos um pouco essa falta para onde somos positivos, o futebol”.
Na mesma linha de raciocínio, segue o professor de pós-graduação do curso de história sociocultural da USP, Flávio de Campos, que entende que, pelo fato da seleção ter “uma trajetória exitosa, gera uma espécie de compensação, de transferência. Nós projetamos para o campo de futebol um pouco de nossa ânsia e desejo de protagonismo internacional. Há uma série de frustrações coletivas que nós jogamos em cima da seleção brasileira”, acredita.
No entanto, como essa construção de identificação do brasileiro calcada no futebol se apóia em bases muito frágeis pela sua superficialidade, alguns perigos circundam o apelo a essa promoção artificial da nacionalidade.
Flávio questiona quando se fala “o brasileiro”. “Que brasileiro estamos falando? É o brasileiro do sudeste, os povos da floresta, o litorâneo, do Pantanal, o pobre, o multimilionário, o de classe média? Existe uma construção ideal do brasileiro que não resiste às diversidades sociais, regionais, culturais e étnicas. Então, na verdade não existe brasileiro, existem brasileiros. Há uma pluralidade no lugar da identidade”.
E o grande perigo dessa idealização é justamente o fato dessas diversidades serem suprimidas, o que aponta para mais um dos elementos contraditórios dessa construção. Bem como ele observa, mesmo nas propagandas mais apelativas, em que se coloca um monte de brasileiros juntos – brancos, negros, indígenas etc. –, não se visualiza a diversidade de orientação sexual, por exemplo. “Há uma absoluta exigência para que todos sejam heterossexuais”, conclui.
Caráter militar
Com o processo de justaposição entre a seleção e nação identificada desde a segunda metade do século 20, seria um absurdo chamar tal confusão de ordem natural, mesmo que tenha ocorrido uma naturalização desse processo, bem como aponta o professor com mestrado e doutorado sobre futebol, identidade e nação, Plínio Labrioli.
Contudo, este processo teve seu caráter acentuado com o passar dos anos, atingindo seu apogeu na época da ditadura civil-militar, quando o regime utilizou o tri campeonato de 19070 para associar o período político com a vitória, criando um elemento que se relacionasse, para os ditadores, com estabilidade interna, propagandeando o próprio governo e provando que o sistema autoritário dava certo. Época em que o ufanismo estava acima de tudo: “Brasil, ame-o ou deixe-o”.
Passadas mais de duas décadas da redemocratização, este exacerbado nacionalismo parece ter sido resgatado por alguns. “Todos que estão na seleção brasileira estão preparados e prontos para se doar para o nosso país”; “fazer o melhor para a seleção brasileira. Vai doer, nós vamos sofrer, nós vamos sangrar”, comentava o técnico Dunga na coletiva após a convocação do time que disputará a copa. Ou ainda, “é importante para todos nós! Nós precisamos entender que isso é a seleção brasileira, é o nosso país, a nossa pátria!”, exaltava-se seu auxiliar técnico, Jorginho.
Plínio acredita que tal atitude por parte dos dois possa ter sido uma estratégia de defesa pela impopularidade do time de Dunga. Mas considera, acima de tudo, um recurso condenável. “Não pode caber em alguém que tenha o cargo dele, quase um cargo público. É uma postura primária. Não se pode utilizar de um sentimento desse quilate para se proteger”, acredita.
O que está em questão, todavia, é a representatividade que discursos como esses contêm. Emoções como essas que se sobrepõe a razões são vistas em períodos históricos extremistas, em que tudo se justifica em torno de um nome. “O que ele pretende levantar é o triunfo da vontade. Nacionalismo, disciplina e voluntarismo tremendo. São componentes fascistas. E é enxergar o futebol realmente como uma guerra. Cria-se um tipo de atmosfera que é ruim num tipo de confraternização que é a Copa do Mundo”, comenta Flávio.
Hilário ainda lembra o fato da palavra “convocação” conter certa conotação militar, em que não apenas os jogadores, mas também os torcedores são “convocados” a exercer esse tremendo patriotismo que é torcer pela seleção. “Portanto, você discordar da convocação, na leitura que eles fazem, é um ato antipatriótico. É o modo deles olharem o futebol. São simplesmente a expressão – chamando mais atenção por estarem no poder – dessa confusão entre a seleção e o país”, conclui.
“Cada um que está na seleção aqui, tem que demonstrar o patriotismo pelo Brasil; tem que torcer pelo Brasil. E peço ao torcedor brasileiro que nos apóie e que, mesmo se não gostarem de mim ou de uma ou outra escolha da seleção brasileira, que gostem do país; gostem do Brasil”, conclamou Dunga.
Meios de comunicação
Em meio a toda essa festa encabeçada pela Copa do Mundo em que a seleção brasileira passa-se pelo próprio Brasil, há outro protagonista proposital e fortemente responsável por essa confusão: a mídia.
“Há muita coisa criada pela mídia, especificamente para vender o produto ‘seleção brasileira’. E a pátria, como o símbolo da identidade do ser humano, tem muita validade para que as pessoas encarem a realidade de uma Copa do Mundo como a realidade delas”, acredita Sérgio Mendonça Costa, da Faculdade Metropolitana da Grande Recife, demonstrando o caráter apelativo dos meios de comunicação ao recorrer a um sentimento comum à maioria das pessoas.
E, numa Copa do Mundo, por ter o embate entre as nações para ver qual seleção é a melhor, naturalmente traz consigo o discurso do patriotismo, acredita Sérgio, o que torna algo natural a ligação entre o futebol e o país. Além de constantemente salientar “um jeito de jogar brasileiro, que é jogar bonito, superior a qualquer coisa e encantador. Por conta desse jeito, tenta-se embrenhar nele para vender os produtos”, diz.
Outro aspecto essencial na costumeira abordagem estereotipada realizada pelos meios de comunicação supervalorizando o futebol brasileiro é o tratamento designado a outras identidades nacionais. “Percebemos, sobretudo nas propagandas de TV, que estamos elegendo uma alteridade e esta alteridade são os argentinos. E de uma maneira muito desrespeitosa. Há um deboche em relação aos argentinos que está vinculado a um conjunto de estereótipos e a uma gravíssima agressão a eles. Essa agressão parte de um pressuposto que seja explicitado durante as partidas”, comenta Flávio, dizendo que, no meio do clima da disputa e da rivalidade, há uma consideração generalizante aos argentinos que se enquadra nessa alteridade. “Isso faz parte desse pacote ufanista que é projetado. É um repertório preconceituoso, desrespeitoso, com o qual temos que tomar cuidado”, explicita.
Contudo, ele acredita que todo esse ufanismo poderia ser “ambicioso para a construção de outra coisa, que é mais importante que o sucesso da seleção, como a construção de uma sociedade pluralista, democrática, na qual haja uma prática de cidadania crítica, intervenção política consciente. Esse é o pressuposto para que tenhamos um sociedade que possa enfrentar seus problemas sociais, regionais e econômicos”.
Mesmo com a cumplicidade dos meios de comunicação e da postura acrítica em relação a esses fatos, responsáveis pela capacidade de amplificar e difundir para um conjunto maior da sociedade certas discussões, assim como lembra Hilário, uma coisa é certa: “O futebol tem essa coisa extraordinária. De um lado ele camufla uma série de questões importantes, mas de outro ele é um dos poucos canais que permite discutir esses assuntos essenciais”.
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Um comentário:
Perfeito!Exprime meu sentimento por esse povo "patriota" que faz asneiras na urna!
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