Antonio Lassance
Há algo de estranho, mas também algo de novo no debate sobre os tributos pagos no Brasil. É possível perceber um realinhamento em torno desse tema que, no futuro, pode tornar-se uma grande bandeira no campo conservador. A tendência é a de que a questão tributária assuma o antigo posto que já foi ocupado pela inflação: o de buraco negro do debate nacional, que absorve tudo à sua volta, relegando problemas essenciais a uma atenção e esforço menores. O dragão se foi; é a vez do leão ocupar o posto de vilão.
Note-se que, todo ano, a agenda sobre o tema é trazida à tona por duas ações promovidas pela Associação Comercial de São Paulo. Com destaque cada vez maior na imprensa, estão se tornando tão tradicionais quanto um Dia de Finados. O primeiro é o "dia da liberdade dos impostos", que neste ano caiu em 28 de maio. É a data a partir da qual se estima que os brasileiros começariam a embolsar seus rendimentos, livres da mordida do leão do Imposto de Renda. O segundo dia, também "comemorado" em espírito de Finados, se dá quando um medidor que estima o volume de impostos arrecadados, apelidado de impostômetro, marca alguma cifra extraordinária. No 2 de junho, ele cravou meio trilhão de reais que se supõe terem sido arrecadados por União, Estados, Municípios e Distrito Federal, desde o início do ano. O número gigantesco fica estampado em um luminoso sobre a sede da Associação Comercial paulista.
O espírito do capitalismo sentiu-se diretamente provocado quando o presidente Lula saiu em defesa da arrecadação de impostos e tocou no xis da questão: o debate de fundo sobre o quanto se paga diz respeito ao que se quer do Estado e a quem ele beneficia.
O estranho é que ninguém gosta da carga tributária brasileira, mas todos a carregam nas costas, certo? Errado. A maioria que paga tributos é aquela a que não tem escapatória, sendo que os mais pobres arcam proporcionalmente mais que os ricos.
Então, quem mais reclama contra o sistema atual são os mais penalizados, certo? Errado. Os que mais reclamam são os que pagam relativamente menos tributos e repassam seus custos aos consumidores de produtos e serviços.
Será que a grande reclamação dos que pagam o custo do Estado é a de que não recebem serviços públicos adequados, em especial em saúde e educação? Nada disso. Essas duas áreas são bem avaliadas pela população de usuários de seus serviços; sua imagem é pior entre aqueles que não os utilizam.
Mas, pelo menos, os que reclamam da pesada carga imposta são ávidos defensores da reforma tributária, certo? Também não. Eles estão politicamente ligados aos que bloquearam a proposta de reforma encaminhada pelo governo Lula ao Congresso, em 2008.
O que há de novo no Brasil é que, até então, o debate econômico esteve concentrado em inflação e, por tabela, em juros. Uma tentativa de redirecionar a agenda conservadora e retomar a ofensiva perdida desde o governo Lula se deu pela crítica ao tamanho do Estado e ao volume (considerado baixo) de investimentos em infraestrutura. Tal ofensiva foi dificultada pela transformação do PAC em eixo do segundo mandato, pela elevação significativa dos investimentos em infraestrutura, pela estabilidade na relação dívida/PIB, pela retomada do crescimento e até por um risco de apagão de mão-de-obra em certos setores superdemandados. O xeque mate veio quando a crise internacional demonstrou a diferença que um Estado robustecido faz quando a especulação financeira ameaça levar países ao fundo do poço, empresas à bancarrota e empregos à estagnação.
Derrotada, essa agenda tende a ser substituída por outra, focada no combate sem trégua à ação arrecadatória do Estado. Tem gente se esforçando muito para fazer com que o ódio aos impostos ganhe ares de mobilização voltada a conquistar a opinião pública.
Em várias cidades, coincidentemente, nos Estados mais ricos, as organizações empresariais ou a elas associadas (como ongs) promoveram atividades voltadas a chamar a atenção dos consumidores sobre quanto eles pagariam sem a incidência de impostos. O alvo preferencial foi o preço da gasolina. No papel de Judas a ser malhado, a CIDE (Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico, um verdadeiro palavrão para o liberalismo). O curioso é que, no preço da gasolina, a CIDE não é o principal tributo. Aliás, a soma de todos os tributos federais sobre a gasolina (CIDE, PIS/PASEP e Cofins) é de 15%, pouco mais da metade do ICMS, imposto estadual que abocanha 28% do que cada cidadão paga na bomba. O ICMS sobre a gasolina chega a ser a principal fonte de receita de alguns governos estaduais.
Mas a vilanização dos impostos, mesmo que estaduais, deve ser analisada com cuidado. Para se tomar um outro exemplo, mais que o dobro do valor pago em tributos sobre o botijão de gás de cozinha é estadual (mais de R$5,00), comparado aos pouco mais de R$2,00 de impostos federais. No ano passado, o presidente Lula empreendeu negociações com alguns governadores de Estado, no Norte e Nordeste, para encontrar uma solução de comum acordo para a redução do preço do botijão de gás, que esbarrou na dificuldade alegada por muitos de reduzir suas alíquotas de ICMS. De todo modo, embora os impostos sobre o gás cheguem a quase 20%, mesmo que fossem retirados todos os eles, o botijão ainda assim seria caro para famílias de baixa renda.
As pessoas sabem que não existe solução mágica. Do contrário, já teria sido eleito presidente da República o candidato que, a cada eleição, defende a proposta de imposto único de 1% sobre transações de débito e crédito.
Mesmo assim, a agenda da redução de impostos pode ganhar mais fôlego do que no passado, empurrada pela intensificação do combate à sonegação. Muitos dentre os mais ricos passaram a pagar impostos pra valer “pela primeira vez na História do País”, graças à ação mais agressiva da Receita Federal, das procuradorias responsáveis pelas ações judiciais contra os sonegadores, do Coaf (o Conselho de Controle das Atividades Financeiras) e do Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional (criado em 2004, no âmbito do Ministério da Justiça). Em 2005, legislação federal instituiu a nota fiscal eletrônica, que Estados e municípios passaram a tornar obrigatória. Indústrias de bebidas passaram a ter sua produção monitorada por medidores de vazão; empresas de ônibus, por tacógrafos; as de tabaco, por contadores de cigarros. Parte do rastreamento de operações financeiras, antes proporcionado pela CPMF (extinta em 31 de dezembro de 2007), passou a ser feito por duas novas instruções normativas baixadas pela Receita, para tentar compensar a perda das informações antes obtidas com a CPMF. Medidas como essas têm reduzido paulatinamente a quantidade de impostores, ou seja, dos que usam subterfúgios para não pagar impostos, mas aumenta o ódio à carga tributária e a grita por sua redução - o que atrai os que pagam seus impostos rigorosamente.
O sistema tributário tem problemas que podemos chamar de estruturais, com todas as letras. Seu debate pode se tornar ideologicamente polarizado por dois extremos: de um lado, os que acham que o mais importante é ter uma carga tão baixa quanto a dos Estados Unidos; de outro, os que propõem serviços públicos tão bons quanto os da Suécia. É possível um meio termo, mas não se pode defender as duas coisas ao mesmo tempo – a conta não fecha.
O assunto tende a ganhar dimensão política mais ampla também por uma razão benéfica e, curiosamente, gerada pela política social do governo Lula. Um dos avanços mais marcantes dos últimos anos tem sido a redução acelerada da miséria e a elevação de amplos contingentes de pessoas pobres a patamares de classe média. São pessoas que passaram a comprar fogões, geladeiras e, agora, automóveis e residências – portanto, começaram a pagar uma carga razoável de impostos, taxas e contribuições. Têm carteira assinada e desconto de imposto retido na fonte, informado em contracheque. Doravante, terão que fazer a enfadonha e pouco amigável declaração anual de imposto de renda.
Com isso, reclamar de impostos passará a ter uma audiência cada vez mais ampla. É um aspecto positivo que demonstra a transição do País para um novo patamar e abre uma disputa política e ideológica sobre esta nova classe média. É isso que pode dar um substrato social mais amplo ao pensamento conservador, a depender da estratégia sobre o tema (ou da falta dela) por parte da esquerda e da direita .
Ou seja, há sinais de que estamos diante de um realinhamento sobre o tema capaz de produzir consequências políticas e ideológicas de grande relevância. Por enquanto, o grande problema para o pensamento conservador brasileiro continua sendo que ele ainda não ganhou referência política clara. Um tema dessa magnitude, que lhes poderia dar “liga” ideológica e programática, tem diante de si duas grandes pedras no meio do caminho.
A menor delas é que uma parte do atual sistema tributário foi montada por esses partidos, quando compunham a antiga coalização governante. Os criadores teriam que rejeitar sua própria criatura – o que não chega a ser um grande problema, basta ver o caso da CPMF. Mais importante é o fato de que uma das mudanças de peso da proposta de reforma encaminhada pelo Governo Lula afeta os Estados mais ricos, muitos deles hoje governados pela oposição. Trata-se da transferência da cobrança do ICMS dos Estados produtores, locais de origem das mercadorias, para os Estados consumidores, de destino para o consumo.
São dois obstáculos que podem desorganizar essa agenda do campo conservador.
De todo modo, é preciso ficar atento, pois há um movimento coordenado para dotar a direita de algo que hoje lhe falta: uma bandeira ampla e poderosa o suficiente para fazê-la voltar a ganhar eleições presidenciais.
Antonio Lassance é pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e professor de Ciência Política.
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