A utopia de Montenegro



Ana Silvia Volpi Scott e Oswaldo Mário Serra Truzzi

A favor do trabalho livre e assalariado! Num tempo em que a maioria dos cafezais paulistas ainda utilizava mão-de-obra escrava, o comendador Montenegro fez diferente. Recrutou imigrantes e com eles fundou uma colônia que oferecia direitos inéditos a seus trabalhadores.

O português João Elisário de Carvalho Montenegro nasceu no município de Lousã, próximo a Coimbra, e chegou ao Brasil com cerca de 18 anos, radicando-se no Rio de Janeiro no início da década de 1840. Ele vinha de uma família de posses. Seu pai era um médico de prestígio em Portugal, mas envolveu-se em lutas políticas que lhe renderam perseguições e considerável perda de patrimônio. Diante disso, o jovem Montenegro decidiu tentar a sorte do outro lado do Atlântico.

Inicialmente dedicou-se ao comércio, trabalhando como caixeiro-viajante. Sua trajetória foi um sucesso: o negócio prosperou e o tornou conhecido como “rei dos viajantes”. Em 1867, resolveu investir seu capital na compra de uma propriedade em Pinhal, interior de São Paulo, e pôr em prática suas idéias sobre a melhor maneira de se administrar uma lavoura de café. Batizou a fazenda com o nome de sua cidade natal e começou a inovar já na contratação dos empregados.

O Núcleo Colonial da Nova Lousã adotou um sistema de recrutamento muito original. Aproveitando-se de sua condição de imigrante, o próprio Montenegro ia selecionar famílias de conterrâneos dispostas a vir para o Brasil trabalhar na fazenda. O procedimento teve rápida repercussão. Jornais da época não tardaram a creditar a este sistema grande parte do clima de boas relações que reinava na colônia e do sucesso alcançado pelo estabelecimento de Montenegro.

De fato, o ambiente era bem diferente daquele encontrado na maioria das fazendas que também utilizavam trabalhadores europeus. Nestas predominavam a desconfiança, os enganos, o desrespeito aos contratos e, muitas vezes, a violência. Uma fonte constante de conflitos era a coexistência de dois sistemas dentro da mesma propriedade – o trabalho escravo e o trabalho livre. Em 1872, por exemplo, no município de Mogi Mirim (ao qual pertencia Pinhal), a população escrava chegava a mais de cinco mil indivíduos, quase um quarto do total de habitantes.

O tradicional sistema escravista havia sofrido um duro golpe em 1850, quando a Lei Eusébio de Queiróz proibiu a importação de escravos da África, decretando o fim do tráfico negreiro. Ao mesmo tempo, a expansão da produção cafeeira demandava uma quantidade crescente de braços para as fazendas que se espalhavam pelo interior da província de São Paulo. A situação gerou discussões sobre alternativas à mão-de-obra escrava, e começaram a surgir experiências de emprego de trabalhadores livres. A principal opção que se abriu aos cafeicultores era a importação de mão-de-obra européia. Esta população costumava estar disposta a se deslocar para a América em função das grandes dificuldades pelas quais passava o Velho Mundo.

Na transição do regime escravista para o de empregados livres, era comum que negros cativos e colonos europeus convivessem lado a lado nas fazendas paulistas. Montenegro enxergava aí um problema que inibia a imigração em massa para o Brasil, pois a utilização dos dois sistemas sempre daria lugar a argumentos de que os colonos eram “tratados como escravos”.

Além de utilizar somente trabalhadores livres, o sistema implantado na Nova Lousã apresentava outra grande novidade em relação aos cafeicultores paulistas: pagava salários mensais. O comum naquela época era o chamado “sistema de parceria”. Idealizado pelo senador Vergueiro (1778-1859), baseava-se em um contrato que destinava à família do colono um certo número de pés de café para o cultivo e uma determinada área de exploração para subsistência. A remuneração era proporcional ao montante de gêneros produzido pela família, descontadas as despesas de transporte, adiantamentos e recursos para a instalação inicial. Vergueiro adotou este sistema na Fazenda Ibicaba, de sua propriedade, localizada no município de Limeira. De lá, a prática se espalhou por São Paulo.

O sistema de parceria tinha claras desvantagens. A principal era a incerteza dos colonos quanto ao lucro que teriam. Geadas, pragas e outros problemas podiam afetar os cafezais e comprometer a produção. Sem falar no clima de desconfiança quanto à lisura dos fazendeiros – afinal, não havia como conferir as condições de negociação e o preço de venda obtido. Montenegro passava ao largo dessas tensões garantindo aos seus colonos o pagamento de salários fixos.

Por fim, a experiência alternativa do comendador adotou mecanismos inéditos para regular e disciplinar direitos, deveres e a convivência entre os colonos. Os regulamentos eram a base do bem-estar e do ambiente harmonioso no interior da propriedade. Em agosto de 1872, uma assembléia de empregados da casa criou o Regulamento Administrativo e Policial da colônia. Enquanto a imensa maioria das fazendas paulistas regulava suas relações de trabalho pela chibata e pelo despotismo absoluto de seus proprietários, Montenegro propôs que da assembléia participassem, com direito a voto, todos os empregados da colônia, homens e mulheres. Com o curioso detalhe de que as mulheres podiam votar mais cedo: aos 16 anos; os homens, só aos 18. As reuniões podiam ser convocadas pelo proprietário ou por iniciativa de metade mais um dos empregados da fazenda. E as medidas eram decididas em votações secretas.

O regulamento previa a aplicação de multas aos empregados que desobedecessem às normas. As mais pesadas visavam coibir a prática de qualquer tipo de violência, para assegurar um relacionamento pacífico entre os colonos. Uma vez multado, o empregado ainda poderia recorrer em assembléia, caso se sentisse injustiçado. O montante arrecadado com as multas, em vez de favorecer o fazendeiro, era revertido para uma caixa de beneficência, cujos fundos seriam aplicados em favor dos colonos que por motivo de doença tivessem que voltar a Portugal.

O modelo prosperava. A fazenda tinha 80 moradores em 1872. Sete anos depois, a população chegava a 124 colonos. Todas essas iniciativas colocavam a Nova Lousã em uma situação que contrastava profundamente com a das outras fazendas de café. A colônia era uma exceção que despertava sentimentos e reações contraditórios tanto no governo como entre os fazendeiros.
Os abolicionistas em geral viam a experiência com muito bons olhos, e utilizavam a fazenda do comendador como modelo a ser seguido. Em julho de 1875, sob o título de “O melhor meio de atrair imigrantes”, a Província de São Paulo publicou:

Hoje devem descer para Santos, com destino a Portugal, alguns colonos da Nova Lousã, propriedade do sr. Comendador J. E. de Carvalho Monte-Negro, os quais, estando terminado o prazo do contrato e tendo feito economias, voltam à terra da pátria satisfeitos, senão ricos, ao menos com meios de viverem sem privações e talvez em tal ou qual abundância. Entre esses colonos há mulheres e até famílias completas. Este fato, honroso para o diretor daquela colônia, já tão conhecida entre nós, é uma excelente recomendação para ele continuar a merecer a confiança dos seus compatriotas. Relativamente à imigração de Portugal, esta volta dos colonos da Nova Lousã deve merecer muita influência em favor de nosso país e especialmente da província de S. Paulo. Se de outras colônias partissem para a Europa colonos felizes e satisfeitos como estes, depois de terminados os seus contratos, outra seria a corrente de imigração européa para cá. Registremos solenemente o fato e fique ele como um bom exemplo a ser seguido.

Mas havia também os céticos, que duvidavam que a aplicação do sistema em larga escala fosse viável. O governo, entre curioso e admirado, era reticente em relação ao que acontecia na propriedade de Montenegro. O relatório de um comissário do governo imperial, enviado para conhecer a colônia em 1870, afirmava que a iniciativa era digna de simpatia e interesse, mas argumentava que era muito cedo para concluir se os resultados alcançados deviam-se apenas às excelentes relações mantidas com os empregados ou se às regras que regulavam estas relações. “A Nova Lousã é antes uma família do que uma colônia, e separa-se dos outros estabelecimentos análogos da província por este lado, tanto como pelo sistema de trabalho que adotou. É por certo uma tentativa digna de todo o interesse e simpatia, e o seu proprietário já tem feito muito. É cedo, porém, para decidir se os resultados que tem alcançado são devidos às excelentes relações que mantém com os empregados ou se às regras que regulam essas relações”, registra o documento.

Oito anos depois, o próprio imperador D. Pedro II visitou a Nova Lousã. Apesar do evidente interesse, o governo não chegou a estimular a continuidade do projeto. Pelo contrário: em várias ocasiões, Montenegro se queixou do descumprimento, por parte do poder público, de contratos firmados para subsidiar a vinda de imigrantes. Faltava todo tipo de crédito para a fazenda, o que o obrigava a vender antecipadamente a colheita de café a preços pouco compensadores.

Duas décadas depois de implantado, o sistema salarial proposto por Montenegro ainda tinha pouca aceitação na província de São Paulo, e não inspirou seguidores. Prevaleceu o sistema de parceria, que mais tarde evoluiu para a empreitada (na qual os colonos eram contratados para realizar tarefas específicas, como preparação do terreno, plantio ou colheita). Após a abolição, em 1888, generalizou-se um sistema de remuneração misto, conhecido como contrato de colono, que combinava salários anuais pelo trato do cafezal, pagamentos pelo volume de café colhido, por tarefas, diárias e alguns benefícios não-monetários.

Diante das dificuldades financeiras, Montenegro vendeu sua propriedade três meses antes do fim oficial da escravidão.

Ana Silvia Volpi Scott é professora da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS) e autora do livro Famílias, Formas de União e Reprodução Social no Noroeste Português (séculos XVIII e XIX) (Guimarães: NEPS - Universidade do Minho, 1999).

Oswaldo Mário Serra Truzzi é professor da Universidade Federal de São Carlos e autor do livro Café e Indústria – São Carlos, 1850-1950 (Imprensa Oficial e EdUFSCar, 2007).

Fonte: Revista de História

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