Mário Maestri
Em janeiro de 1821, no Rio Grande do Sul, Auguste de Saint-Hilaire anotava em seu diário que o Brasil perigava ser "perdido pela casa de Bragança" e que "suas províncias" podiam explodir em nações independentes, "como as colônias espanholas", considerando-se a tamanha diferença entre elas. Escrevia enfaticamente o arguto naturalista: "Sem falar do Pará e de Pernambuco, a capitania de Minas e do Rio Grande, já menos distanciadas, diferem mais entre si que a França da Inglaterra".
Desde sua origem, a América portuguesa foi mosaico de regiões semi-autônomas, de frente para a Europa e África, de costas umas para as outras. As diversas colônias exportavam seus produtos e importavam os manufaturados e cativos que consumiam pelos portos da costa. Eram muito frágeis os contatos entre as capitanias e, mais tarde, as províncias, inexistindo o que hoje definimos como mercado nacional.
Nas diversas regiões, os grandes proprietários controlavam o poder local e viviam em associação subordinada às classes dominantes portuguesas metropolitanas. Os proprietários luso-brasileiros sentiam-se membros do império lusitano, possuíam laços de identidade regional e desconheciam sentimentos ‘nacionais’, impensáveis devido à inexistência de entidade nacional .
Quando do projeto recolonizador da Revolução do Porto, em 1820, as classes dominantes provinciais mobilizaram-se por independência restrita aos limites das regiões que controlavam. O Brasil seguia sendo entidade sobretudo administrativa, sem laços econômicos e sociais objetivos e subjetivos. A construção do Estado-nação brasileiro esboçou-se no II Império e foi sobretudo produto do ciclo nacional-industrialista dos anos 1930.
Nas províncias atuavam as mesmas forças centrífugas que explodiram a América espanhola em constelação de repúblicas independentes, mesmo tendo, ao menos as classes exploradoras, o espanhol como a mesma língua; o catolicismo como a mesma religião; a Espanha como a mesma metrópole. Porém, todas as províncias do Brasil emergiram da Independência coeridas por monarquia centralizadora e autoritária.
Quando da crise de 1820, as classes dominantes provinciais desejavam pôr fim ao governo absolutista lusitano, nacionalizar o comércio português, resistir às pressões abolicionistas do tráfico inglesas e imperar plenamente sobre suas províncias. No relativo à ordem política, dividiam-se em monarquistas e republicanos; quanto à conformação nacional, eram federalistas ou separatistas.
No Norte, Nordeste, Centro-Sul e Sul, eram fortíssimas as tendências republicanas e independentistas. Como assinalado, tudo levava a crer que o Reino do Brasil explodiria em repúblicas, como as possessões espanholas, que sequer mantiveram os laços dos antigos vice-reinados – Nova Espanha; Nova Granada; Peru; Prata.
Um grande problema angustiava os grandes proprietários de todo o Brasil. Realizar a independência e não comprometer a escravidão, base da produção e da sociedade de todas as províncias. Fortes choques militares entre as classes proprietárias provinciais e as tropas metropolitanas, na luta pela independência, e entre as primeiras, na luta pelas novas fronteiras, colocariam em perigo a submissão dos cativos e a manutenção do tráfico.
As classes proprietárias do Brasil sabiam que a guerra levaria ao alistamento e à fuga de cativos, como ocorrera durante a guerra anti-holandesa, em 1630-1654, e em diversas outras ocasiões. Tinham em mente o exemplo aterrorizador da grande sublevação dos cativos, vitoriosa no Haiti, em 1804. Os Estados luso-brasileiros que abolissem a escravidão, por não dependerem da instituição, acolheriam cativos fujões. As pequenas nações negreiras vergariam-se ao abolicionismo britânico do tráfico.
O comerciante inglês John Armitage, que chegou ao Brasil com 21 anos em 1828, registrou em sua perspicaz História do Brasil os temores das classes proprietáriaslocais: "Quaisquer tentativas prematuras para o estabelecimento da república teriam sido seguidas de uma guerra sanguinolenta e duradoura, na qual a parte escrava da população teria pegado em armas, e a desordem e a destruição teriam assolado a mais bela porção da América Meridional."
O Estado monárquico, autoritário e centralizador brasileiro foi partejado e embalado pelos interesses negreiros. A Independência deu-se sob a batuta conservadora dos grandes escravistas. Os ideários republicano, separatista e federalista provinciais foram reprimidos.
A independência do Brasil foi a mais conservadora das Américas. Os proprietários brasileiros romperam com o Estado e o absolutismo português e entronizavam o autoritário herdeiro do reino lusitano. Cortavam as amarras com a ex-metrópole e transigiram com os seus interesses mercantis e de sua casa real. Mantiveram-se unidos para garantir, por mais seis décadas, a exploração escravista.
Mário Maestri é historiador, professor do curso e do programa de pós-graduação em História da UPF
Nenhum comentário:
Postar um comentário