Uma "democracia puta"?

Emir Sader

O diário ABC Color, do Paraguai, publicou um editorial de primeira página, no dia 7 de outubro, com esse grosseiro título: “Uma democracia puta”.

Não se referia à ditadura do Partido Colorado, que há sete décadas controla o poder e perpetua o Paraguai como um dos países mais pobres do continente. Nem à reconversão dessa ditadura para uma forma “democrática” dessa ditadura, que fez com que a viúva do ex-ditador Alfredo Stroessner comentasse, singelamente: “Só falta o Alfredo”.

Não. Referia-se à Venezuela, um regime que teve seu presidente eleito e reeleito várias vezes, submetido à confirmação do voto popular no meio do seu mandato, com um mecanismo de controle dos eleitores sobre os eleitos, que nenhum outro país do continente possui.

O ABC Color é o principal jornal do Paraguai. Não é necessário um exercício de memória muito grande para imaginar sua convivência com a ditadura do partido-Estado Colorado. Agora dizem que apóia a Lino Oviedo, recém libertado para tentar bloquear a possibilidade de vitória de Fernando Lugo, derrotando pela primeira vez ao Partido Colorado. O candidato de preferência do jornal foi condenado em três processos, um deles por participação na morte do ex-vice presidente Luis Argaña, outro deles por tentativa de golpe militar.

Esse jornal se atreve a julgar o caráter democrático do regime venezuelano, para tentar bloquear o ingresso da Venezuela no Mercosul. “Se nossos presidentes do Mercosul, mesmo sabendo qual é sua obrigação histórica com a defesa dos princípios e dos valores políticos que iluminam nossos povos, são capazes de se vender ou de ligar-se mediante uma relação adúltera com um ditador megalômano surgido das catacumbas de um passado sinistro, teremos que convir que nossas democracias se vendem como autênticas putas” – diz o editorial do jornal paraguaio.

Antes desse final, o jornal fez um apelo aos parlamentares do Paraguai e do Brasil, para que impeçam o ingresso da Venezuela ao Mercosul – porque disso se trata, essa é a operação política que a direita do continente trata de armar. São os aliados paraguaios dos parlamentares da direita brasileira que igualmente se opõem à entrada da Venezuela no Mercosul.

Até julho de 2006, o Mercosul se limitava aos conflitos comerciais entre as grandes corporações privadas da Argentina e do Brasil, na disputa de mercados, relegando o Uruguai e o Paraguai a coadjuvantes sem importância. A participação da Venezuela e da Bolívia, posteriormente do Equador e a aproximação de Cuba, permitem romper esse crculo vicioso.

Acontece que todos aqueles que continuam identificados com os interesses dos EUA, do chamado “livre comércio”, que se opõem à consolidação e à extensão da integração latino-americana, buscam deter a entrada da Venezuela, com todo o dinamismo e a ampliação de temas que a incorporação do governo de Hugo Chavez representa. Se opoem ao gasoduto continental, se opõem ao Banco do Sul. Se opõem à autonomia do continente diante da hegemonia imperial dos EUA.

São esses os que tentam atrasar a integração continental, representando os interesses do império na região. No Paraguai, como no Brasil, são esses os que resistem ao Mercosul, à integração regional, como agentes do “livre comércio”, do FMI, da OMC e do Banco Mundial. Para isso não poupam nem esforços, nem vocabulário grosseiro. São resquícios de um passado que, embora resistindo – como o Partido Colorado – tem seus dias contados.


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