O Papa Bento XVI está preocupado em afirmar o caráter da Igreja Católica como a verdadeira e única igreja de Cristo. Para tanto, mandou elaborar um documento intitulado “Respostas a questões relativas a alguns aspectos da doutrina da Igreja” que pretende “interpretar com clareza” algumas afirmações sobre a natureza da Igreja Católica originadas do Concílio Vaticano II (1962-1965), convocado pelo Papa João XXIII. Aos olhos de Bento XVI, o papado de João XXIII “descaracterizou” o catolicismo, afastando-o do caminho da “verdadeira Igreja de Cristo”. A preocupação doutrinária do atual pontífice não é nova. A Igreja Católica tem uma extensa folha corrida em torno desta questão.
Em 1307, o frei Dulcino, líder da seita cristã dos apostólicos, foi queimado vivo em Vercelli, na Itália, acusado de heresia contra a boa doutrina cristã. O comando da Igreja Católica de então empregou métodos, digamos, heterodoxos, para defender essa doutrina. Antes de ser lançado às chamas, frei Dulcino teve a carne arrancada com alicate quente, o nariz quebrado e os órgãos genitais mutilados (esse e outros casos citados a seguir podem ser encontrados no perturbador “O Livro Negro do Cristianismo – Dois mil anos de crimes em nome de Deus”, de Jacopo Fo, Sergio Tomat e Laura Malucelli, lançado no Brasil pela Ediouro).
O livro coordenado por Jacopo Fo, filho de Dario Fo (prêmio Nobel de Literatura em 1997), mostra como os ensinamentos de Jesus Cristo deram lugar a rígidos dogmas, impostos muitas vezes a ferro e fogo. Idéias e interpretações diversas daquilo que seria a leitura correta da palavra de Cristo foram tratadas como heresias, constituindo um longo e vergonhoso histórico para a Igreja Católica, do qual alguns exemplos são a perseguição aos judeus, o genocídio praticado nas Cruzadas, as fogueiras e torturas da Santa Inquisição, o massacre dos huguenotes, o apoio ao regime escravocrata na América católica, entre outras práticas empregadas pela Igreja de Roma para defender a boa palavra de Deus.
Espalhando a fé pela espada e pelo fogo
Durante o papado de João Paulo II, o Vaticano pediu desculpas por alguns desses crimes. Agora, aparentemente, o Papa Bento XVI está retirando esse pedido. Em setembro de 2006, o pontífice citou uma frase de um imperador bizantino do século 15, que criticou o profeta Maomé por sua “ordem para espalhar a fé que pregava pelo medo da espada”. Além de provocar a ira da comunidade muçulmana no mundo inteiro, a declaração mostrou também o lado hipócrita dessa cruzada doutrinária. “Espalhar a fé pelo medo da espada” não é um preceito estranho à história da Igreja Católica. A história de frei Dulcino não é um caso isolado.
A história das Cruzadas não é marcada propriamente por atos que ilustram as idéias de Cristo. “Os exércitos de Deus”, escreve o italiano Jacopo Fo, “talvez tenham matado mais cristãos do que infiéis”. “Os exércitos cristãos que se dirigiam à Palestina tinham um longo caminho a percorrer, sem provisões ou acampamentos organizados. Portanto, tinham como costume obter o que precisavam saqueando as cidades cristãs pelas quais passavam durante a viagem. Por exemplo, a famosa Cruzada dos Mendigos, em 1096, que causou o massacre de quatro mil pessoas apenas na cidade húngara de Zemun”. Neste mesmo ano, a cruzada conduzida pelo “nobre” alemão Gottschalck matou mais de dez mil pessoas que tentaram resistir aos saques.
Neste caso, nem se tratava de uma disputa doutrinária, mas sim de uma mistura de banditismo puro e de delírio. “Alguns homens seguiram para as Cruzadas seguindo os passos de um pato! Estes devotos acabaram se unindo a uma Cruzada guiada por um ilustre salteador chamado Emich, que nunca chegou à Terra Santa, limitando-se a um tour durante o qual massacrou milhares de judeus, espoliando-os de seus bens”, relata ainda Fo. Em várias dessas Cruzadas, os “soldados de Deus” treinaram para enfrentar os “infiéis muçulmanos” na Palestina matando milhares de “infiéis judeus” na Europa. Mas nem tudo é morte nessa história. Havia também preocupações de ordem comercial. “Em 1212, trinta mil meninos da Europa Central partiram para as Cruzadas sozinhos e sem armas. A maior parte desse ‘exército’ embarcou em Marselha acreditando partir para libertar o Santo Sepulcro. Em vez disso, os garotos (pelo menos os que sobreviveram aos contratempos da viagem) foram vendidos aos turcos como escravos.
A santa evangelização da América
Durante sua recente visita ao Brasil, Bento XVI defendeu a atuação da Igreja Católica no processo de “evangelização na América”, assegurando que “o anúncio de Jesus e do seu Evangelho não envolveu em qualquer momento, uma alienação das culturas pré-colombianas, nem foi uma imposição da cultura alheia”. O Papa esqueceu-se de mencionar alguns “detalhes” dessa história. O trabalho de conquista, subjugação e evangelização dos povos americanos foi inaugurado por comandantes de exércitos a serviço do reis da Espanha e da fé católica. A espada sempre andou de mãos dadas com a cruz neste trabalho que, segundo Bento XVI, não envolveu nenhuma imposição nem alienação. Quantos mortos a conquista supostamente patrocinada por Deus e conduzida pelas mãos dos conquistadores deixou? – pergunta Jacopo Fo. Ele mesmo responde:
“No México, só a título de exemplo, a população passou de 12 milhões, em 1519, a menos de 1,3 milhão na metade de 1600. Noventa por cento da população local havia sido exterminada. No início do século XVI, a população nativa do continente centro e sul-americano girava em torno de setenta milhões de pessoas. Na metade do século XVII, havia sido reduzida a sete milhões. Há vários relatos nada edificantes nesta jornada de evangelização dos “povos selvagens da América”:
“Um povo nativo, guiado pelo chefe indígena Hatuey, tentou se rebelar contra a escravidão. Tentaram uma fuga em massa, mas foram novamente capturados pelos espanhóis. Hatuey foi queimado vivo. Quando o amarraram ao patíbulo, um frade franciscano implorou insistentemente para que abrisse seu coração a Jesus, de modo que sua alma pudesse subir aos céus, em vez de se precipitar na perdição. Hatuey respondeu dizendo que se o Céu era o lugar reservado aos cristãos, ele preferia de longe ir para o Inferno”.
Tudo isso foi praticado, obviamente, com base legal e doutrinária. Jacopo Fo relembra: “A base legal da conquista era o Requerimiento, um documento que os funcionários espanhóis liam, obviamente em espanhol, aos povos que pretendiam submeter antes de dar início aos combates. O documento começava com uma breve história da humanidade, na qual surgia uma figura central, Cristo, definido como o chefe da estirpe humana. Cristo transmitiu seu poder a São Pedro, e este, aos papas, seus sucessores. Um desses papas deu o continente americano aos espanhóis que eram seus legítimos governantes. Se os índios se submetessem aos espanhóis de boa vontade, manteriam o status de homens livres, do contrário seriam capturados como escravos”.
“Com isso, garanto e juro que, com a ajuda de vocês (...) para submetê-los ao jogo e ao poder da Santa Igreja (...), causando-lhes todo prejuízo possível e de que somos capazes, como convém a vassalos obstinados e rebeldes que não reconhecem seu senhor e não querem obedecer, mas se opor a ele” (David E. Stannard, “Olocausto americano: la conquista del nuovo mondo”, Turim, Bollati Boringhieri, 2001).
“A letra mata, o espírito vivifica”
Esses são apenas alguns relatos de uma história de crimes negada pela declaração feita por Bento XVI no Brasil. O Vaticano procurou corrigir depois a afirmação dizendo que não foi bem isso que o pontífice quis dizer, etc. e tal. Mas tudo indica que há método nas declarações do atual ocupante do trono de Pedro. Não são deslizes verbais ou falas causadas por desconhecimento histórico. Joseph Ratzinger é um homem erudito, muito erudito. Conhece certamente esse fatos e duas passagens bíblicas apreciadas pelo falecido Papa João Paulo I, que defendeu que a Igreja Católica deveria doar sua riqueza para os pobres e miseráveis do mundo:
“O Apóstolo não é arrogante nem orgulhoso. Começamos de novo a recomendar-nos a nós mesmos? Ou temos porventura necessidade (como alguns) de cartas de recomendação para vós ou de vós? A nossa carta sois vós, escrita em nossos corações, reconhecida e lida por todos os homens, sendo manifesto que sois vós a carta de Cristo, escrita pelo nosso ministério, não com tinta, mas com o espírito de Deus vivo, não em tábuas de carne que são o coração. Temos esta confiança em Deus, por Cristo; não que sejamos capazes por nós mesmos de pensar alguma coisa (sobrenaturalmente boa), como vinda de nós mesmos, mas a nossa capacidade vem de Deus, o qual também nos fez idôneos ministros do Novo Testamento, não pela letra (da lei), mas pelo Espírito, porque a letra mata, mas o Espírito vivifica” (Coríntios, II, 3, 1-4)
“Devemos renunciar aos bens da terra. Não acumulei para vós tesouros na terra, onde a ferrugem e a traça os consomem, e onde os ladrões perfuram as paredes e roubam. Entesourai para vós tesouros no céu, onde nem a ferrugem, nem a traça os consomem, e onde os ladrões não perfuram as paredes nem roubam. Porque onde está o teu tesouro, aí está também o teu coração” (Mateus, 6, 19-21).
A Igreja Católica está preocupada com a perda crescente de fiéis para outras igrejas e com o abandono puro e simples da idéia de uma vida religiosa. A julgar pelas recentes declarações do Papa Bento XVI, com suas preocupações doutrinárias, parece mais preocupada com a perda de poder terreno do que com a erosão de sua capacidade de dialogar com as dores e angústias do espírito humano contemporâneo. Sem querer ensinar o padre a rezar missa, talvez devesse pensar com humildade sobre onde é mesmo que está o espírito e o tesouro dos ensinamentos de Cristo, ao invés de reavivar dogmas supostamente cristãos e de promover revisionismos históricos que insistem em diluir, ou mesmo negar, crimes cometidos em nome de Deus.
Fonte: Carta Maior
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