Lula e seus heróis

Gilson Caroni Filho


O presidente Lula já deveria ter aprendido a lição. É pequena a margem para improvisações, no mínimo ambíguas, quando a grande imprensa dá mostras diárias de que continua em campanha. Falas descontextualizadas, direcionamento de títulos e coberturas não constituem exceções na prática do jornalismo político. Pelo contrário, são as regras quando o alvo é o segundo mandato do presidente.

Talvez, para melhor compreender o que vai na alma de alguns editores e parlamentares oposicionistas, devêssemos recorrer a definições de democracia elaboradas pelo guru de todos os golpistas, o ex-governador Carlos Lacerda. Para ele o regime democrático não era um fato, um rótulo, mas algo feito com amor e sacrifício, “entre ódios e vociferações”. E se faltam os dois primeiros atributos no dias atuais, os dois últimos são ofertados em abundância.Ao afirmar, em discurso no interior de Goiás, que “os usineiros que até dez anos atrás eram tidos como bandidos do agronegócio deste país, estão virando heróis nacionais e mundiais”, Lula açulou a ira dos "Novos Cães de Guarda", feliz definição do jornalista francês Sérgio Halimi para o papel desempenhado pela mídia contemporânea.

O presidente precisa entender que não haverá composição conservadora ou concessões ao capital que o tornem palatável ao conjunto das classes dominantes brasileiras. O ódio ao ex-líder sindical que chegou à Presidência da República é de natureza classista. Político carismático, ele representa uma afronta simbólica às elites que sempre estiveram encasteladas na estrutura de poder. Uma fratura tão mais dolorosa quanto mais se revela sua capacidade de compreensão do descontentamento popular e a habilidade de transformar essa insatisfação em uma potente força política.

O objetivo deste pequeno artigo não é absolver Lula e sua dialética imprecisa. Ou talvez precisa demais como sinalizadora dos pactos a que se dispõe a fazer, mas registrar a estranheza com a mudança na estrutura narrativa do campo jornalístico que ela produziu. Convém lembrar que não é a primeira vez que o presidente se embaraça ao falar de heróis.

Ao associar, em 2004, durante a abertura da campanha "o melhor do Brasil é o brasileiro”, a baixa estima da população à desagregação da estrutura familiar e à ausência de heróis no imaginário nacional, Lula perpetrou, em momento crítico, um atentado à lucidez. Ou talvez tenha mostrado a conveniência de ocultar as reais causas do que vislumbrava. Inverter nexos causais costuma ser imperativo quando, desapontando expressiva parcela do eleitorado de esquerda, um governo se vê obrigado a guardar alguma continuidade com a política econômica cujo combate o levou ao poder.Nossas mazelas, decerto, passam por contextos integradores esfacelados.

Famílias com precárias redes de solidariedade entre seus membros acentuam um quadro social em que despontam a violência e o individualismo exacerbado. Contudo, isso é efeito. Nunca, como quis supor o presidente da República, causa. Os indicadores sociais, por si só, evidenciavam um tecido corroído por anos de um projeto de poder excludente. Por que, subitamente, o pensamento de alguém forjado no embate político-sindical, tergiversava sobre a realidade concreta? Por que uma reflexão histórico-política deu lugar a uma ponderação que era forte candidata a entrar no pantanoso terreno do anedotário das nossas elites? Talvez a resposta fosse melancólica demais. O transformismo calava fundo nas expectativas e arrefecia o ardor da militância. Não seria a primeira vez que isso ocorria, mas, sem dúvida, nunca teria sido tão doloroso.

As capitulações costumam mesclar reducionismo e bizarrice na dose certa. Esqueçamos, então, os juros estratosféricos que inibem o investimento produtivo Desprezemos, como fator importante, o contingenciamento de verbas que seriam aplicadas em saúde, saneamento, educação e infra-estrutura. Nada disso teria relevância?

A questão central, segundo o presidente, deitava raízes num ponto mais prosaico do que imaginávamos? Para Lula "o hábito de o brasileiro achar que o Estado pode resolver tudo deveria ser substituído pelo resgate de valores religiosos, familiares e de amizade". O que se podia depreender dessa fala? Para muitos, o binômio que o governo petista apresentava, em sua fase de conversão, àquela altura era: "Estado mínimo, amizade máxima". Na ribalta da "esquerda realista", Keynes cedia a cena para um Hayek de insuspeitos pendores maternais. A cordialidade teria vencido a esperança? Lógico que não foi assim, mas setores voluntaristas da esquerda e os editores de economia se complementavam na interpretação equivocada.

Mas voltemos aos "usineiros heróis" e às maravilhosas oficinas de consenso da nossa imprensa.Quem a conhece sabe dos recortes construídos por ela sobre os movimentos sociais e o lugar cativo que ocupam em telas e páginas. Qualquer organização que se disponha a agenciar demandas de setores excluídos, a apresentá-los como sujeitos dotados de direitos é, a priori, não-notícia. A menos que seja envolta em práticas de significação que rotule como baderna os que se apresentem como contrapoder às relações de expropriação e dominação, viabilizadas pelo ordenamento legal existente.

Pois bem, após a fala do presidente, o que vimos nos grandes jornais (Folha de S. Paulo, Globo e Estado de S. Paulo) foi uma inflexão inédita. Articulistas, editores e colunistas se uniram contra a precariedade do trabalho no campo. Contra a exploração desumana da força de trabalho em canaviais. Trabalhadores sem água, banheiro ou equipamentos de proteção ganharam, enfim, visibilidade nas editorias de política e economia. Desastres ambientais, desmatamentos ilegais e queimadas apareceram com destaque. Nunca se viu conversão ética de tamanha envergadura. O norte da cobertura, não nos enganemos, era emparedar o presidente contra suas próprias palavras. Na grande imprensa, os "ódios e vociferações" costumam se travestir de boas causas. Todos sabemos quem são os heróis de nossa mídia Severina.

O momento, se Lula o quiser, pode ser um divisor de águas. O primeiro mandato foi marcado por inegável reestruturação do Estado e sua revitalização regulatória. Como escrevemos em artigo publicado na Carta Maior em 28/04/ 2006 (Em favor de Lula), "a queda na concentração de renda atingiu o melhor resultado em 24 anos. A parcela que recebe os menores rendimentos obteve ganho real de 3,2% e Lula elevou o rendimento médio da população, em queda desde 1977".Tivemos, em suma, crescimento com redistribuição de renda. Nada que lembrasse a modernização conservadora do tucanato e sua total inapetência para dialogar com os movimentos sociais.A política externa registrou inegáveis avanços.

Porém, como destacou, recentemente, Emir Sader o governo Lula não rompeu inteiramente “com a manutenção de um padrão de acumulação centrado na especulação financeira, na exportação (cada vez mais primária, com a soja como grande estrela) e no consumo de luxo, com a liberação cada vez maior dos transgênicos". Qualquer avanço, portanto, só será possível com uma repactuação no campo democrático-popular. Com o fortalecimento das forças progressistas que apóiam o governo. Querer alargar demais o arco pode levar a um retrocesso impensável.

Se o Novo Aurélio define herói, como “homem extraordinário pelos seus frutos guerreiros, por seu valor ou magnanimidade" cabe a Lula procurá-lo no mundo do trabalho e não em administrações de usinas ou no que há de mais conservador em seu Ministério. Se a existência heróica é uma construção simbólica que cumpre algumas funções importantes no nosso desenvolvimento, certamente a sua personna não estará no latifúndio ou no ar sombrio de um Reinold Stephanes.

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