Por Tarso Genro
A tese do “gigante acordou”, acarinhada pela direita conservadora e pela grande mídia no período das manifestações recentes, é uma fantasia manipulatória neoliberal. Ela tem por objetivo criar um caldo ideológico destinado a “naturalizar” a tese de que o Brasil precisa embarcar nas “reformas” que vem sendo feitas, atualmente, no continente Europeu.
Esta fantasia faz um jogo sujo, do ponto de vista histórico, para promover uma omissão que torna invisível o povo trabalhador e outros atores sociais progressistas, no processo das grandes lutas que precederam e sucederam a Constituição de 88.
As conquistas que dela derivaram, as lutas respondidas com assassinatos e torturas contra o regime militar, a luta pelas diretas, pela Constituinte, o “Fora Collor”, a eleição de Lula em 2002, promoveram extraordinárias conquistas políticas e sociais, com grande influência da esquerda que, para os promotores do “gigante acordou”, não passaram de um embuste, que agora os tecnocratas dos “ajustes” de segunda geração colocarão no seu devido lugar. Trata-se de iludir que, como gigante estava dormindo, nada ocorreu no período que precedeu as manifestações. E que a suposta “letargia” do país, até agora, abrir-se-á para uma dinâmica democrática nova, patrocinada como uma grande novela das oito, ajustada certamente com o tucanato e os zumbis pefelistas que ainda restam.
A leva de manifestações que antecedeu o dia nacional de lutas de 11 de junho, mobilizadora de milhões de pessoas no país, confrontada com a modesta mobilização conseguida pelas centrais naquela data, inclusive a denominada “Conlutas”, obriga a esquerda que governa dentro da democracia política – o que se dá necessariamente com alianças problemáticas – a repensar sua estratégia para o próximo período. As conexões entre “tática” e “ética” – no contexto de uma crise econômica mundial que não será solucionada com legitimidade nos quadros da atual democracia representativa – voltam com toda força.
Não se trata de desprezar alianças ou de avocar-se um “purismo” irreal para fazer política. Este “purismo” só existe como aparência, naquela parte das classes médias conservadoras, quando os seus líderes preferidos pensam em aumentar algum imposto ou não estão governando de acordo com os seus interesses imediatos. Trata-se, penso, de avaliar como se dará o sistema de alianças, necessário para o próximo período, considerando um Congresso majoritariamente conservador e desligado do mundo real. Um Congresso regionalizado nas suas relações políticas e que só se move perante uma forte pressão para salvar sua pele, seja para que “lado” for.
De outra parte, quando nos referimos às relações entre “tática” e “ética”, estamos falando de interdependência entre “fins” e “meios”. Ou seja, em que ponto da estratégia política as alianças deixam de ser táticas e passam a ser “estaticismos”. Quando é que os meios (alianças), passam a ser um fim em si mesmo (estagnantes), apenas usados para manter uma certa hegemonia (esgotada) que, no concreto, já não faz mais o projeto avançar, bloqueando os fins do projeto pensado na Revolução Democrática? (Esta, significando a recuperação das funções públicas do Estado, a combinação dinâmica da democracia representativa com a democracia direta, a promoção de um modelo de desenvolvimento não tutelado pelo capital financeiro globalizado: mais políticas públicas de Estado, mais participação, mais igualdade, empregos, trabalho de qualidade e proteção social digna).
As amplas mobilizações sociais deste período, não só não devem ser desconhecidas, como também não podem ser desqualificadas pela fragmentação da sua pauta. As simpatias que elas suscitaram na grande mídia, a ausência de lideres visíveis ou mesmo a forte adesão dos setores mais conservadores da sociedade, que se manifestavam “contra tudo”, contra os políticos em geral e contra os partidos, não tira o seu valor político. Foi, ainda, uma manifestação em parte alienada, pois fulminava por igual as instituições partidárias, que mesmo apenas aderentes poderiam se opor às manipulações do senso comum pelo fascismo ou pelo anarco-direitismo, como ocorre com frequência nestas oportunidades.
A verdade é que, majoritariamente, foram manifestações populares de inconformidade e “mal estar”, pelas mais variadas causas. E tiveram o mérito de mostrar a desqualificação das estruturas de saúde pública e do transporte coletivo, principalmente nas grandes regiões metropolitanas, que não mereceram atenção responsável dos governantes, pelo menos nos últimos vinte anos. O movimento foi aproveitado para tentar reorganizar um sentimento de repulsa à esquerda e ao governo Dilma? Foi, é óbvio.
A grande mídia induziu-o, assim como fabricou a tese do “gigante que acordava”. E ela mesma vibrava de ira cívica e arrogância, até que se deu conta que também estava na linha de tiro: os controlados se rebelaram contra os seus controladores no processo de formação da opinião. Uma mobilização política daquela dimensão não emerge sem ter base, em alguma medida, nas fortes desigualdades sociais e nos contrastes entre pobreza e riqueza, que caracterizam o “capitalismo real”. Isso supõe, em consequência, um descontentamento com quem sempre defendeu os ajustes do sistema financeiro e a ordem social que promoveu as desigualdades, que também estavam sendo impugnadas nas ruas.
Um mero manifesto nas redes, como diz Manuel Castells, não mobiliza ninguém. As mobilizações ocorrem quando têm bases na vida diária das pessoas e no seu anseio efetivo por mudanças, que inclusive supõem a democratização da circulação da opinião e um sistema de informação plural, no âmbito das comunicações, atualmente controladas por quem apoia a globalização financeira do mundo, tal qual ela é orientada pelo Banco Central Europeu e pelo FED.
São os que promovem os “ajustes” em Portugal, Espanha, Grécia, Itália, extinguem empregos sem criar outros melhores e fazem-no com a mesma voracidade que submetem a democracia aos seus tecnocratas da especulação, tornando irrelevantes os governos e as eleições. Quando a grande mídia começou alertar que o “gigante acordou”, boa parte do povo nas ruas entendeu, na verdade, que se tratava -para esta “companheira de mobilização” - de desmantelar conquistas e não de avançar para um novo patamar de democracia e de ampliação dos direitos, conquistados nos últimos trinta anos de democracia e dez anos de governos progressistas no país.
Apanhado de surpresa com a intensidade do movimento o Governo Federal reagiu abrindo um diálogo formal e propondo medidas para incorporá-lo no patrimônio político da República. Esta estrutura política demonstrou, no entanto, estar mais atrasada, quanto ao seu sistema de representação, do que os movimentos “diretos” de rua, que clamavam por mais participação, mais Estado e Estado mais eficiente. Este “atraso” das instituições políticas da democracia representativa já está patente na digestão que o Congresso atual (pelas as suas maiorias partidárias) está fazendo do aspecto mais arrojado da proposta presidencial: o plebiscito.
O processo plebiscitário, que tanto pode servir de avanço para a participação da sociedade na resistência à crise econômica global, relegitimando pela reforma o Estado Democrático de Direito em franca crise, como para recuperar a dignidade da política – envilecida pelas maiorias partidárias e pelo financiamento empresarial das campanhas – parece que vai ser substituído pelo pragmatismo eleitoreiro, que envolve tanto a oposição conservadora como grande parte da base do governo.
Este é o ponto central, de cuja análise seremos capazes de desenhar uma estratégia para o próximo período, que envolva tanto as eleições presidenciais de 2014, os efeitos dos movimentos sobre elas, bem como a continuidade da ação das redes e das mídias, já como sujeitos determinantes e permanentes da luta política. Aquelas, as redes, com uma influência ainda maior -para o bem o para o mal- na formação da opinião, de forma externa à democracia de partidos que carregamos até agora.
O sistema de alianças atual, no plano nacional, foi montado para sustentar um governo que, no contexto do conservadorismo neoliberal mundial do início do século XXI, precisava ser extremamente defensivo para governar um país quebrado. Com uma relação Dívida x PIB alarmante, carente de infra-estrutura mínima (mesmo para dar um pequeno “salto para frente”), com inflação elevada, juros altíssimos e com total falta de credibilidade perante um sistema financeiro mundial asfixiante não se constituiu, no primeiro governo Lula, uma aliança programática explícita. Constituiu-se uma aliança pragmática, defensiva de uma governabilidade mínima, necessária para iniciar algumas mudanças no país, que o então Presidente conduziu a sua melhor possibilidade.
Hoje seria necessário que os partidos de esquerda se unissem e promovessem um processo inverso: as alianças a partir do programa. Não mais um programa “espontâneo” que coopte alianças de sobrevivência, que em 2002 foram inevitáveis, mas desenhar um programa de avanços, tanto no modelo de democracia política, como no modelo de crescimento com inclusão e pleno emprego, apontando de forma clara a origem dos recursos para áreas “chaves”.
Formar as alianças com um programa capaz de dar um novo impulso ao iniciado em 2002: fundos específicos e vinculados para a reforma agrária; para a mobilidade e o transporte coletivo urbano; para a saúde pública e a educação, com os percentuais do PIB respectivos – crescendo ano a ano - para cada setor, vislumbrando o ponto ótimo à médio prazo. Colocar, assim, explicitamente em lugar dependente, os demais compromissos orçamentários e inverter, desta forma, a hierarquia orçamentária atual, que tem na dívida e não no povo, o seu fator determinante.
No plano político o programa deveria explicitar as novas formas de participação direta, presencial e virtual, as políticas de referendo, plebiscito e consulta, abrindo caminhos para uma democracia de alta intensidade e participação, com estabilidade e previsibilidade. Hoje seria necessário, portanto – para que o próximo governo não seja um governo de crise - desenhar as alianças a partir de um programa claro, não confeccionar as alianças para daí resolver o que fazer.
É preciso, para que isso ocorra, que o PT como partido majoritário da esquerda, volte a ser um partido-sujeito, de governo, de luta e de movimento. Não seja apenas um “partido-apoio”, que até agora pode ter cumprido uma boa missão, mas que está visivelmente esgotada. Não é que “o gigante acordou, finalmente”, como sugeriu a grande mídia, pois ele já estava bem alerta. É que agora ele quer caminhar por paisagens mais verdejantes, que o neoliberalismo e o conservadorismo em geral, não tem a menor possibilidade de oferecer. Pode, o PT?
Tarso Genro é governador do Rio Grande do Sul
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