A novíssima consciência individual foi às ruas


Por Luiz Marques


Muito ainda vai se falar sobre as manifestações do Junho de 2013, no Brasil. Nelas, as redes sociais tiveram um importante papel na mobilização para as celebrações políticas da livre cidadania. Um vasto segmento populacional disse, alto e bom som, que não se sentia representado no Executivo, no Legislativo, no Judiciário ou na mídia nas três esferas federadas (municipal, estadual e federal). Tinha início a crise do Estado, que cobra uma reforma política através de um plebiscito.
           
Obviamente que a mídia, maior partido de oposição, aproveitou-se da situação para ressignificar os protestos e canalizá-los contra o governo central e o PT. Pesquisas mostraram que o  intento foi em parte bem sucedido. Mas nenhum expoente contrário ao projeto em curso alçou-se como candidato favorito nas próximas eleições presidenciais. Dilma segue no páreo, com reais chances de emplacar a reeleição, exceto se a economia desandar, a inflação fugir ao controle e o desemprego aumentar tornando dramática a sobrevivência de famílias já bastante endividadas.
            
Aqui, no entanto, gostaria de chamar a atenção, não para o sentido político geral das manifestações, o que tentei em outro momento (“Desafios da conjuntura”), mas para um elemento que está a configurar o que se pode denominar de novíssima consciência individual. Esse texto busca uma aproximação inicial com o tema, abordado sobretudo pelos teóricos pós-modernos.

                                                                       II
            
Na Antiguidade, não havia uma consciência individual tal como a que conhecemos após o Renascimento. Os antigos gregos não concebiam a existência dos indivíduos à parte da Cidade-Estado, sequer a título de fantasia. Não lhes era razoável supor um indivíduo fora dos laços sociais e dos compromissos estabelecidos com a sua Cidade-Estado. Robinson Crusoé pareceria-lhes um ET.
            
Talvez o melhor testemunho disso seja a Oração Fúnebre aos Gregos Mortos na Guerra de Peloponeso: “Olhamos o homem alheio às causas públicas, não como alguém que cuida apenas de seus interesses, mas como um inútil”, discursou Péricles, a personalidade política mais relevante do séc. 5  a.C. Os indivíduos não existiam separados de seu status de cidadãos. A própria ideia de autoria não tinha o sentido que adquiriu com o longo passar do tempo para destacar as individualidades. As obras de arte gregas e romanas não eram assinadas, por exemplo.
            
Se o indivíduo como o concebemos hoje não existia na Antiguidade, já durante toda a Idade Média a percepção individual foi regulada por intérpretes. Os textos bíblicos, filosóficos, matemáticos, astronômicos, etc estavam em livros do tamanho de uma mesa. Para se ter ideia, rememore-se cenas do filme O nome da Rosa, de Jean-Jacques Annaud (1986), baseado no best-seller de Umberto Eco. Para acessar os livros era necessário ir até à biblioteca dos mosteiros, onde monges que dominavam idiomas como o aramaico, o grego, o latim e o árabe faziam a leitura dos alfarrábios aos grupos de interessados e, junto, a hermenêutica das obras. A consciência dos indivíduos era de empréstimo, não se poderia atestar que fosse autônoma e independente.

                                                                       III

A mudança ocorreu em consequência de uma revolução tecnológica: a invenção da prensa por Gutemberg, em 1498. A revolucionária prensa gutemberguiana permitiu a impressão, pela primeira vez, do livro portátil. Foi inaugurada pela tradução da Bíblia feita por Martim Lutero (1483-1546) para o alemão, o que propiciou que fosse lida e interpretada pela burguesia emergente sem mediação. A partir daí, generalizou-se o exercício da consciência individual. Jean Calvino (1509-1564) levou, com nuances, o giro intelectual que modificou a relação dos indivíduos com Deus e com o mundo para a França e a Bélgica. Nem o catolicismo, apesar da Contra-Reforma, ficou imune à transmutação histórica e cultural que está na origem do individualismo.

Era a modernidade que nascia. Quando os clássicos do marxismo referem-se à tomada de consciência pelas classes trabalhadoras, referem-se a pensamentos construídos de forma dialógica e a práticas coletivas que contribuem para o despertar da consciência individual. A passagem de classe em si à condição de classe para si se dá quando todos e cada um têm claro a sua posição na processo de produção e seus interesses em termos políticos. As narrativas herdadas do séc. 19, o liberalismo, o anarquismo e o socialismo têm por assoalho o juízo autônomo, o discernimento individual que eclodiu com o protestantismo. Nisso reside a liberdade dos modernos.

                                                                       IV

O desenvolvimento do capitalismo transcorreu sob o signo do individualismo simbolizado na possibilidade de escolha individual (frente às alternativas do mercado, acrescente-se). O impulso veio do livro portátil, o feito tecnológico que gerou o indivíduo como o compreendemos na atualidade. Se a história do amor narra o desvencilhamento dos sentimentos em face da família, da propriedade e do poder patriarcal, a história do individualismo narra a luta travada pela consciência individual contra as tradições e a autoridade representada pelo poder clerical e estatal.

A angústia e a solidão, teorizadas pela filosofia existencialista, foram o preço a pagar por essa emancipação. Nunca, na trajetória da humanidade, os indivíduos haviam adquirido tanta relevância no imaginário da sociedade. Impossível especular sobre os rumos da opinião pública, modernamente, sem considerar os interesses pessoais presentes nos diversos grupos e classes sociais. Os breves parágrafos acima pretendem ser uma síntese do que caracterizou o período abrangido pela modernidade até agora. Servem para situar a problemática historicamente.

                                                                       V               
Os celulares multifuncionais, a internet e as redes sociais são o equivalente contemporâneo da prensa inventada no final do séc. 15, porque acarretaram também uma revolucionária transformação dos hábitos e costumes. A introdução de uma formidável inovação tecnológica de largo alcance na vida cotidiana da sociedade, no plano das comunicações, conduziu a uma recontextualização da consciência individualcom apelos mais horizontais e igualitários dirigidos ao sistema de representação e demandas de transparência no funcionamento das instituições e qualidade nos serviços públicos. Pleitos, estes, derivados da própria natureza e uso dos celulares multifuncionais, da internet e das redes sociais.

Essa novíssima consciência individual foi às ruas nas cidades brasileiras, recentemente, com uma direção descentralizada e uma energia que balançou os alicerces da República. Suas reivindicações precisarão ser decodificadas e incorporadas na agenda nacional para que se possa, de fato, empreender uma relegitimação das instituições políticas. As convocações para as manifestações no começo ocorreram pelas redes sociais, a seguir deram-se pela televisão. Mas isso não retira a importância das redes na formação da identidade dos ativistas mobilizados.  

O fenômeno impactou, preferencialmente, jovens entre 18 e 24 anos que somam 22,5 milhões e correspondem a 11,7% da população. Nos últimos dez anos, além do acesso às novas tecnologias, aumentou na juventude o contingente de universitários que era de 7% em 1997 e saltou para 18% em 2011 (fonte: IBGE, Ipea). Com mais informação e conhecimento formal, irromperam “os protestos da melhora” que “não ocorrem quando a vida piora, mas quando fica melhor”. A elevação do nível de escolaridade produziu uma elevação de expectativas por direitos. A diferença de tratamento dispensada aos pobres é menos aceita à medida que aumenta a escolaridade, mostram as pesquisas.

Ou seja, sem as políticas implementadas nos governos Lula/Dilma não teria havido movimento de tamanha proporção no País. A questão é saber se as políticas de distribuição de renda se sustentarão sem uma profunda reforma tributária, de resto impossível dentro do atual modelo de governabilidade e com o atual Congresso (Vladimir Safatle, “Os limites do governo”, Carta Capital, 10/07).

                                                                       VI
    
A novíssima consciência individual tem suporte nas tecnologias comunicacionais que se tornaram sinônimo de juventude. Significa que um novo campo de disputa exige a intervenção das forças de esquerda. A sociedade civil é o espaço, por excelência, para a luta política e ideológica. As redes sociais são um momento da sociedade civil, em que corações e mentes travam batalhas. A atuação da esquerda deve abranger mais que os locais de trabalho, estudo e moradia. Petistas e cutistas devem penetrar a cotidianidade e fazerem-se íntimos da contemporaneidade. Com intensidade e urgência. 

Dito diferente, o desafio posto à democracia do séc. 21 para que seja mais inclusiva está em promover a combinação da representação com a participação social, tanto presencial quanto digital.



*Luiz Marques é professor de Ciência Política da UFRGS.
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