Por Luciana Ballestrin
O Brasil está vivendo um momento histórico de efervescência política. Ao mesmo tempo em que as análises definitivas e os diagnósticos acertados devem ser afastados, as interrogações assumem a velocidade dos acontecimentos: afinal, o que está se passando no país? Até agora todos buscam sem êxito explicações; exatamente por isso, as linhas de ação futura para a esquerda se projetam titubeantes e confusas sem saber ao certo os efeitos que irão surtir. Por esquerda a entendemos (ainda) como um campo de teoria e ação política para o qual converge àqueles que lutam pela ampliação da cidadania, democracia e justiça, em todos os campos da vida pessoal, coletiva e ambiental, desde o âmbito local até o global.
No reino deste mundo, um Zeitgeist de protesto. Os movimentos atuais desde 2011 compartilham de algumas características comuns: o não alinhamento com as noções oitocentistas de esquerda e direita; a fragmentação das identidades políticas; o protagonismo de uma soma de indivíduos (indignados, insatisfeitos) em detrimento da soma de organizações tradicionais como partidos políticos, movimentos sociais e sindicatos; a opção pela não verticalização e liderança do movimento; a utilização em larga escala das redes sociais do mundo virtual para mobilização; a ocupação da rua, espaço público e democrático por excelência; a descrença no sistema político tal como hoje se apresenta nas democracias representativas do mundo ocidental; a denúncia da promiscuidade das relações entre Estado e Mercado (incluindo aqui a mídia hegemônica); o aparecimento de um novo sujeito, um sujeito em marcha, seja individual ou coletivo.
Este cenário sugere que o fenômeno que atualmente ocorre no Brasil não se trata de uma manifestação de caráter exclusivamente nacional. Sugere também que as categorias que as Ciências Sociais e Humanas dispõem atualmente para interpretar o mundo em movimento não conseguem mais apreender a complexidade, ligações, atores, discursos, plataformas, organização, escalas e âmbitos das novas formas de ação coletiva e da disputa por hegemonia no âmbito da sociedade civil e fora dela. Claramente, existe uma descaracterização de teorias clássicas explicativas e um questionamento direto ao âmago dos limites da representação, participação e deliberação políticas.
É importante notar como cada contexto local produz diferentes sentidos, ações e significados para este Zeitgest. Tomando como exemplo o Brasil - cuja realidade econômica e política se difere radicalmente daquela observada nos Estados Unidos, Espanha, Grécia, Turquia, Tunísia e Egito, por exemplo - observa-se que a vida associativa pregressa e os problemas específicos locais projetam com mais ou menos força certas demandas e reinvindicações. Assim, a dimensão continental do Brasil permite que alguns problemas façam maior ou menor sentido de acordo com a cidade.
É certo, porém, que o país nacionaliza problemas comuns, como a violência e repressão policial, a precariedade da educação (primária e secundária) e saúde públicas, o monopólio dos meios de comunicação, as práticas de corrupção institucional que atrelam o sistema político ao econômico, entre inúmeros, inúmeros outros... O Brasil é um triste exemplo de democracia formal que convive com índices alarmantes de desigualdade social e violência armada. A modernidade criadora avança no Brasil e com ela formas destruidoras de colonialidade, seja do Estado, seja de empresas nacionais ou multinacionais a ele ou não associadas. A questão ambiental, econômica e desenvolvimentista emerge com importância inédita. Velhas reinvindicações ganham força com atraso vergonhoso, como a questão do direito à verdade e à memória dos crimes cometidos pela ditadura civil-militar - ausente por sinal, na grande maioria dos protestos.
A democracia como regime político não tem a pretensão de eliminar as insatisfações individuais e projetar o conceito (liberal) de felicidade. Neste momento contagiante e incerto, no qual explode um interesse por política nas ruas e nas redes, com uma ampla e parcial cobertura midiática, cabe-nos resgatar um pouco de história do Brasil e pensar com responsabilidade os rumos que queremos tomar. O Brasil hoje é conhecido por ainda possuir serviços públicos de qualidade (ainda que insuficientes e precários), ausentes em muitos países tidos como “desenvolvidos”; pela reformulação da ideia de democracia participativa, seguida por várias cidades do mundo; pela redução significativa dos números de desemprego, beirando o patamar do pleno emprego; pela retirada de 40 milhões de pessoas da pobreza extrema; pela melhora das condições e da expectativa de vida de parte significativa de seus habitantes; pela expansão das vagas e universidades públicas; por uma política externa emancipada do eixo central e hegemônico; pelo enfrentamento da crise econômica mundial de 2008.
Em pesquisa recente do Datafolha, um número aproximado de 40% dos entrevistados é insensível ou indiferente à preferência de um regime democrático. Na história do país, quando os brados nacionalistas e ufanistas somaram-se ao senso-comum antipartidário e/ou anticorrupção, seguiram-se os golpes de 1937 e 1964. O “movimento” atual, longe de ser apolítico, ao tempo em que comporta pautas democráticas, justas e legítimas, tem exposto também o que há de mais reacionário, conservador, intolerante e ignorante que dormia sob as barbas do “gigante adormecido”. Episódios de desobediência civil e vandalismo ainda configuram uma minoria em um conjunto de manifestações em marcha, ainda que a teoria democrática permita em certa dosagem o dever de desobedecer.
Ainda que várias bandeiras possam ser aproveitadas e aprofundadas para a radicalização da nossa democracia, uma soma de acontecimentos nebulosos tem espalhado no ar uma profunda desconfiança nas consequências que a explosão paralela do civismo e do moralismo antipolíticos possa gerar. O apoio da Rede Globo aprofunda esta estranheza, dado, entre outros fatores, seu histórico antipático às grandes mobilizações populares.
Zeitgeist é uma palavra alemã, sem tradução para a língua portuguesa e que sugere em última instância, o espírito de um tempo, de uma época. Se esse espírito é a insatisfação e a indignação, que sua energia seja revertida em diálogos, ações e canais construtivos, institucionais ou não. Esperamos muito alertas que na jovem democracia brasileira ele não seja encarnado na velha fórmula que dolorosamente a América Latina tem muita experiência em conhecer. A impossibilidade deste tipo de desfecho está em aberto e depende urgentemente do arrefecimento de forças ocultas que têm embalado parcelas da multidão.
(*) Cientista Política e Coordenadora do Curso de Relações Internacionais da Universidade Federal de Pelotas.
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