Após kit anti-homofobia, curta-metragem brasileiro com temática homossexual é censurado por pressão de religiosos. Mais uma prova que a luta por um estado laico segue necessária.
Por Bruno Carmelo
Embora a atualidade esteja cheia de casos de censura na China, na Rússia, na Líbia, a polêmica em torno deste filme explicitou a execução da censura no Brasil. Ora, existem dois lados muito diferentes em Eu Não Quero Voltar Sozinho, este curta-metragem tão comentado atualmente. Acredito que ambos mereçam igual peso de análise:
O primeira razão, a mais midiática delas, diz respeito à dimensão política que ele adquiriu desde que o governo do Acre decidiu censurá-lo do programa Cine Educação. Este curta aborda duas temáticas sensíveis, uma politicamente correta e aceita (a deficiência visual) e a segunda, tabu (a homossexualidade). Com o pressão de religiosos tradicionalistas, o filme foi banido e, mais do que isso, o próprio projeto Cine Educação foi suspenso.
Após a discussão sobre o kit anti-homofobia, com o papel de políticos como Jair Bolsonaro e diversos religiosos associando homossexualidade a pedofilia, incesto, degradação social e outras atrocidades, mais uma vez um conteúdo educativo sobre a atração entre pessoas do mesmo sexo foi percebido como perigo social. Diversos intelectuais têm protestado, mas infelizmente o peso dos protestos parece inferior à influência de católicos e evangélicos neste governo laico. Têm toda a razão aqueles que protestam, principalmente pelas redes sociais, contra este tipo de atitude que tem se reproduzido com uma frequência espantosa.
A grande ironia é ver que justamente este curta-metragem, de conteúdo mais apolítico impossível, se tornou uma espécie de símbolo da luta contra o fundamentalismo religioso no Brasil. Parece que quanto mais o país se desenvolve, com uma economia estruturada e uma sociedade melhor informada, mais este tipo de conflito entre o novo e o antigo, entre a democracia e a autoridade reacionária, tende a se reproduzir.

O medo da “contaminação”, do “ensinamento da homossexualidade” explicita o fato de que a condenação dos gays é feita essencialmente por aqueles que desconhecem o assunto, e recusam conhecê-lo. Transformar a homossexualidade numa consequência da (má) educação, ou da falta de afeto, como sugeria Bolsonaro, insinuar que se trata de um fator de moda, externo, imposto ao indivíduo frágil e influenciável, é negar que uma pessoa possa expressar por si própria a atração por outros do mesmo sexo. Esta forma de pensamento faz da heterossexualidade não apenas a única sexualidade aceita, mas a única estimada natural ou possível. Qualquer outra forma de amar é considerada uma perversão, uma deterioração, e por isto mesmo dissociada do afeto e aproximada da depravação sexual.
Por estes fatores, este tipo de caso merece e deve ser comentado com fervor.
Ora, também existe Eu Não Quero Voltar Sozinho, o filme. Para diminuir o caráter “nocivo” deste discurso de acordo com os religiosos, os seus defensores partiram para uma estratégia equivalente, mas simetricamente oposta. Passou-se a defender o curta com unhas e dentes, chamá-lo de realista, humanista, delicado, “necessário”. Passou-se a listar todos os diversos prêmios que ele ganhou. Certamente, esta recepção de prêmios indica que ele teve boa recepção em certos locais – ainda que um festival de cinema e o meio escolar no Acre sejam esferas sociais completamente distintas -, mas finalmente pouco importa se o filme é bom ou não, se foi premiado ou não. Ele não tem o direito de ser proibido – pelo menos não pelo simples fato de relatar um tema tabu.

Ora, enquanto curta, este projeto segue uma certa forma de respeito à homossexualidade que acaba por relatá-lo de maneira singela, sugestiva, lúdica. A frontalidade poderia ser assimilada à provocação, razão pela qual o jogo de insinuações inocentes e praticamente infantis (estes adolescentes brincando de “gato mia” no quarto) é escolhido como alternativa honrosa. O questionamento da homossexualidade está longe de ser complexo, mas também não tem intenção de sê-lo. Este não é um filme para incitar a refletir, ele é principalmente uma “sensibilização” à questão, ou seja, uma mise en scène o mais naturalista possível (luz natural, música ambiente, planos de conjunto) para insistir no fato que aquele tema ali também é perfeitamente natural.
Paralelamente, não se procura nenhum formalismo, nenhuma inventividade plástica que possa retirar a atenção do tema. Este é um “filme de roteiro”, com uma mensagem precisa; ele é um discurso sobre o mundo e não sobre o cinema. A consequência é uma aparência careta, acadêmica, quadradíssima, e perfeitamente consciente disso. Poderia se reclamar de muitas coisas neste projeto, mas não que o diretor “não tem nada a dizer”, como lançam os críticos de vez em quando. É provável que seja pela presença de uma mensagem moral que este filme foi facilmente associado à pedagogia, e ao “proselitismo” (já que, segundo os religiosos, não atacar a homossexualidade é equivalente a defendê-la).
Resta um pequeno filme, pouco pretensioso e mesmo ingênuo, cheio de boas intenções e de uma competência clara mas discreta, preso numa discussão muito superior às suas intenções humanitárias ou cinematográficas. Eu Não Quero Voltar Sozinho se encaixa no momento em que o Brasil reconhece a união civil entre gays mais permanece o país onde mais se assassina transexuais no mundo, uma das oito economias mais poderosas e com maior desigualdade social, que prepara a Copa e as Olimpíadas, mas não consegue controlar a pressão religiosa no Acre. Um país com vários braços, que abraçam causas completamente diferentes e contraditórias.
Eu Não Quero Voltar Sozinho (2010)
Filme brasileiro dirigido por Daniel Ribeiro.
Com Guilherme Lobo, Tess Amorim, Fabio Audi.
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Filme brasileiro dirigido por Daniel Ribeiro.
Com Guilherme Lobo, Tess Amorim, Fabio Audi.
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