Karl Marx


Por Eduardo Mancuso

Transformar o mundo”, disse Marx, “mudar a vida”, disse Rimbaud – para nós essas duas palavras de ordem são apenas uma.
André Breton


Karl Marx nasce em 5 de maio de 1818, em Trier, na Renânia, filho de judeus alemães convertidos ao cristianismo. Seu pai era um liberal admirador do Iluminismo e a família Marx tinha como vizinho o alto funcionário do governo da Prússia, barão Ludwig Von Westphalen, culto aristocrata, pai de Jenny, futura esposa do jovem Marx.
Em 1841, após alguns anos na universidade – em Bonn e Berlim – onde conhece a obra filosófica de Hegel, Marx aprova sua tese de doutorado sobre os pensadores gregos Demócrito e Epicuro, mas o reacionário governo prussiano recusa uma cátedra ao jovem doutor. Ele assume então a direção do jornal A Gazeta Renana, mas sua linha editorial democrático radical leva o governo a fechá-lo. Em 1843, casa-se com Jenny e emigra para Paris, onde conhece Engels , mergulha na história da Revolução Francesa e do socialismo e na efervescência das sociedades e dos clubes operários.
Em 1844, Marx colabora na publicação dos Anais Franco-Alemães e redige os Manuscritos econômico-filosóficos, também conhecidos como Manuscritos de Paris. Nessa obra de juventude, Marx define o comunismo como a superação da “pré-história” humana, e faz uma lúcida previsão:
Para superar o pensamento da propriedade privada, basta o comunismo pensado. Para suprimir a propriedade privada efetiva, é necessária uma ação comunista efetiva. A história virá trazê-la, e aquele movimento que já conhecemos em pensamento como um movimento que se supera a si mesmo percorrerá na realidade um processo muito duro e muito extenso.
Em 1845, Marx e Friederich Engels já haviam estabelecido uma sólida amizade e uma parceria política e intelectual que duraria décadas, e que se inicia com a elaboração a quatro mãos de A sagrada família, cujo subtítulo era Crítica de uma crítica crítica (apresentação sarcástica das idéias metafísicas de alguns filósofos idealistas alemães), em que definem a essência da sua concepção humanista e materialista da história:
A história nada faz, ela “não possui nenhuma riqueza imensa”, “não trava nenhuma batalha”. É o homem, o homem vivo, real, que faz tudo isto, que possui e luta; a “história” não é uma pessoa à parte, que usa o homem para seus próprios fins particulares; a história nada é senão a atividade do homem que persegue seu objetivo...
Nesse mesmo ano, expulso da França, Marx vai para Bruxelas, Bélgica. Ele escreve, então, as geniais e concisas Teses sobre Feuerbach, breves anotações feitas pelo jovem de 27 anos em seu caderno, marcadas por um humanismo radical e revolucionário que inaugura a filosofia da práxis. Engels as chamou de “germe genial de uma nova concepção do mundo”. Com as Teses sobre Feuerbach, Marx lança as bases de “um novo materialismo”, profundamente dialético e distinto do materialismo vulgar existente até então. Na tese 2, Marx afirma a prática como critério de verdade:
A questão de saber se é preciso conceder ao pensamento humano uma verdade objetiva não é uma questão de teoria, porém uma questão prática. É na prática que o homem deve comprovar a verdade, isto é, a realidade efetiva e a força, o caráter terrestre de seu pensamento.
Na tese 3, a prática revolucionária aparece como síntese da mudança do mundo e da autotransformação:
A doutrina materialista da mudança das circunstâncias e da educação se esquece de que as circunstâncias são mudadas pelos homens e que o próprio educador deve ser educado. (...) A coincidência da mudança das circunstâncias e da atividade humana ou autotransformação só pode ser interpretada e racionalmente compreendida como prática revolucionária.
E conclui suas anotações com a célebre tese 11:
Os filósofos apenas interpretaram o mundo de forma diferente, o que importa é mudá-lo.
Em 1846, Marx e Engels concluem mais um trabalho conjunto, os dois volumes de A ideologia alemã. O manuscrito não foi publicado e ficou entregue “à crítica roedora dos ratos” segundo os próprios autores (sua primeira edição vem a público apenas no século XX). A ideologia alemã apresenta a definição clássica sobre a dominação ideológica:
As idéias da classe dominante são, em cada época, as idéias dominantes; isto é, a classe que é a força material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, sua força espiritual dominante.  A classe que tem à sua disposição os meios de produção material dispõe, ao mesmo tempo, dos meios de produção espiritual, o que faz com que a ela sejam submetidas, ao mesmo tempo e em média, as idéias daqueles aos quais faltam os meios de produção espiritual.
Em 1847, Marx publica A miséria da filosofia, uma crítica da doutrina contida na “filosofia da miséria” do pensador anarquista Proudhon. Segundo Engels  A miséria da filosofia também apresenta “os princípios fundamentais de suas novas concepções históricas e econômicas”; esboça também a teoria sobre o sujeito revolucionário:
 De todos os instrumentos de produção, a maior força produtiva é a própria classe revolucionária. (...) A condição de emancipação da classe operária é a abolição de todas as classes (...).  No transcurso de seu desenvolvimento, a classe operária substituirá a antiga sociedade civil por uma associação que exclua as classes e seu antagonismo; e não existirá já em poder político propriamente dito, pois o poder político é, precisamente, a expressão oficial do antagonismo de classe, dentro da sociedade civil. Enquanto isso, o antagonismo entre o proletariado e a burguesia é a luta de uma classe inteira contra outra classe, luta que, levada a sua mais alta expressão, implica numa revolução total.
Marx e Engels ingressam na Liga dos Comunistas (antiga Liga dos Justos, organização de trabalhadores alemães emigrados), e redigem o programa do movimento. O Manifesto do Partido Comunista fica pronto e é editado no início de 1848, pouco antes de explodir as revoluções européias, a Primavera dos Povos, que apesar da derrota abre um novo período da luta de classes em escala internacional. Um espectro ronda a Europa, o espectro do comunismo, assim inicia o mais famoso panfleto político de todos os tempos, que apresenta como pressuposto que a história de todas as sociedades até o presente é a história das lutas de classes, resume a dialética da modernidade com a metáfora tudo que é sólido desmancha no ar, e conclui com a palavra de ordem: Proletários de todos os países, uni-vos!
Antevisão genial da globalização capitalista, o Manifesto é mais atual hoje do que há 150 anos. Para o sociólogo Michael Lowy, a atualidade do Manifesto Comunista se origina de suas qualidades ao mesmo tempo críticas e emancipadoras, isto é, da unidade indissolúvel entre a análise do capitalismo e o chamado à sua destruição, entre o exame lúcido das contradições da sociedade burguesa e a utopia revolucionária de uma sociedade solidária e igualitária.
 Ainda em 1848, Marx e Engels voltam para a Alemanha e se instalam em Colônia, onde lançam o jornal Nova Gazeta Renana, mas o processo revolucionário reflui e Marx faz o balanço político do movimento em As lutas de classes na França, no qual conclui que o fim do ciclo das revoluções burguesas abriria a época das revoluções proletárias. Em março de 1850, na Mensagem ao Comitê Central da Liga dos Comunistas, Marx utiliza pela primeira vez o conceito de “revolução permanente” como o processo que levaria “até a conquista do poder estatal pelo proletariado” e “não em um único país, mas em todos os países dominantes do mundo inteiro”.
A partir daí, Marx fixa residência em Londres, onde passa anos na completa miséria, a ponto de algumas vezes não poder ir ao Museu Britânico, onde realiza suas pesquisas, em razão de ser obrigado a penhorar seu casaco de inverno para poder comprar papel e continuar escrevendo. Em 1852, ele escreve outra obra-prima, O dezoito brumário de Luis Bonaparte, sobre o golpe de estado de Napoleão III na França. As suas primeiras linhas são célebres:
Hegel observa, em uma de suas obras, que todos os fatos e personagens de grande importância na história do mundo ocorrem, por assim dizer, duas vezes. E esqueceu-se de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa. (...) Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado.
Entre 1857-58, Marx redige vários manuscritos que dão origem aos chamados Grundrisse (Elementos fundamentais para a Crítica da Economia Política), que só serão conhecidos um pouco antes da Segunda Guerra Mundial, publicados pelo Instituto Marx-Engels –Lenin de Moscou, sem maior divulgação. Devido à sua importância na evolução intelectual da obra teórica de Marx, os Grundrisse são considerados por alguns analistas como uma espécie de “elo perdido” entre o “jovem Marx” e a sua obra da maturidade.
Em 1859, Marx publica Contribuição à Crítica da Economia Política, e no seu famoso prefácio resume as linhas gerais da sua concepção materialista da história:
Nas minhas pesquisas, cheguei à conclusão de que as relações jurídicas – assim como as formas de Estado – não podem ser compreendidas por si mesmas, nem pela dita evolução geral do espírito humano, inserindo-se, pelo contrário, nas condições materiais de existência... A conclusão geral a que cheguei e que, uma vez adquirida, serviu de fio condutor dos meus estudos, pode formular-se resumidamente assim: na produção social da sua existência, os homens estabelecem relações determinadas necessárias, independentes da sua vontade, relações de produção que correspondem a um determinado grau de desenvolvimento das forças produtivas materiais. O conjunto dessas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base concreta sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e a qual correspondem determinadas formas de consciência social. O modo de produção da vida material condiciona o desenvolvimento da vida social, política e intelectual em geral. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser; é o seu ser social que, inversamente, determina a sua consciência. Em certo estágio de desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes ou, o que é a sua expressão jurídica, com as relações de propriedade no seio das quais se tinham movido até então. De formas de desenvolvimento das forças produtivas, estas relações transformam-se no seu entrave. Surge então uma época de revolução social.
Durante sua primeira década em Londres, o único rendimento de Marx era como colaborador do jornal Tribuna de Nova York, mas após esse período dificílimo, Engels garante a ele uma ajuda financeira regular, e um grande amigo, o militante comunista Wilhelm Wolf, deixa-lhe uma pequena herança. Marx dedica a ele o primeiro volume de O Capital (1867), que não consegue concluir em vida (Engels edita o volume II em 1885 e o volume III em 1894). Antes de publicar O Capital, Marx termina os três volumes intitulados Teorias da mais-valia, em que analisa criticamente o pensamento teórico sobre a economia política, particularmente o de Adam Smith e David Ricardo.
Em 1864, um congresso realizado em Londres funda a Associação Internacional dos Trabalhadores (Primeira Internacional) e Marx redige o seu Manifesto Inaugural, onde assinala que a emancipação dos trabalhadores será obra dos próprios trabalhadores. Durante o breve período de existência da Internacional, Marx se dedica a sua organização e assume a condição de principal dirigente do Conselho Geral. A derrota da Comuna de Paris, em 1871, quando o povo parisiense toma o poder na capital durante mais de dois meses e implanta um governo democrático revolucionário, mas é esmagado pelo exército francês em um banho de sangue, sela o destino da Internacional. Para Marx, a Comuna é a primeira “ditadura do proletariado” da história (baseada no armamento do povo e no voto direto e universal), e mostra que o governo dos trabalhadores precisa destruir o Estado burguês e erguer um estado controlado democraticamente pelos produtores associados, destinado a desaparecer historicamente junto com a divisão da sociedade em classes sociais. Marx presta homenagem a Comuna de Paris publicando A guerra civil em França, e propõe ao Congresso da Internacional de 1872, realizado na Holanda, a transferência da sede da organização para os Estados Unidos, em razão da repressão generalizada que se segue ao massacre da Comuna; porém, a Primeira Internacional deixa de funcionar em 1876.
A partir da década de 1870, declina a capacidade de trabalho de Marx, em face do agravamento do seu estado de saúde, mas, preocupado com o programa adotado pelos socialistas alemães, em 1875 escreve a Crítica ao Programa de Gotha:
Entre a sociedade capitalista e a sociedade comunista media o período da transformação revolucionária da primeira na segunda. A este período, corresponde também um período político de transição, cujo Estado não pode ser outro que a ditadura revolucionária do proletariado.
Em 1882, no prefácio da edição russa do Manifesto Comunista, Marx realiza uma previsão ao mesmo tempo heterodoxa (para os padrões do socialismo até então) e genial: que uma revolução na Rússia pode constituir-se no sinal para a revolução proletária no Ocidente, de modo que uma complemente a outra. Em 1883, após a morte de sua esposa e de sua filha mais velha, Marx falece e é enterrado no cemitério de Highgate.
Dois séculos depois do desaparecimento do “pensador socialista que maior influência exerceu sobre o pensamento filosófico e social e sobre a própria história da humanidade”, conforme ressalta verbete do Dicionário do Pensamento Marxista; após a social-democracia e o stalinismo terem sido remetidos para a “lata do lixo da história”; e em plena crise sistêmica do capitalismo globalizado, que já ameaça a continuidade da vida humana no planeta; podemos seguramente concordar com o marxista norte-americano Marshall Berman: “Marx está vivo. E vai bem de saúde”.

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