A militarização da assistência humanitária e seus riscos
Por Pierre Krähenbühl
O aumento do número de mortos entre os profissionais de assistência humanitária no ano passado evidencia questões que confrontam as agências de assistência. Com o aumento dos ataques contra os profissionais humanitários e a politização e a militarização da assistência, acredito que estamos presenciando um conjunto de mudanças de paradigmas que afetará profundamente a forma como as organizações prestam assistência durante a guerra. Os perigos não poderiam ser maiores para as agências humanitárias e para as vítimas de conflitos armados.
Na última década, os ataques deliberados contra os profissionais humanitários se tornaram um lugar comum. Eles são claramente ilegais e inaceitáveis e devem ser condenados com veemência. A rejeição aos profissionais humanitários é, no entanto, também uma consequência de políticas que integram a assistência humanitária a estratégias políticas e militares. Há algum tempo, essa questão é conhecida como o debate sobre a falta de distinção entre os âmbitos humanitário e político-militar. É apropriado que as forças armadas estejam envolvidas em atividades humanitárias?
Para o Comitê Internacional da Cruz Vermelha, a questão não é se os militares podem contribuir ou não para os esforços humanitários; por exemplo, segundo o Direito Internacional Humanitário, os militares têm a obrigação de evacuar os civis feridos. No entanto, que a assistência se torne parte de estratégias de contrainsurgência é uma questão muito mais problemática. Não posso deixar de pensar em uma declaração à imprensa feita pelas forças internacionais no Afeganistão alguns anos atrás na qual se enfatizava que a assistência humanitária estava ajudando as mesmas e as forças afegãs a ganharem "a luta contra o terrorismo".
Tais desdobramentos levaram as partes em conflito e as populações afetadas a associarem todos as ações humanitárias com objetivos políticos e militares específicos no Afeganistão e em outros lugares. Quando a ação humanitária se torna parte das estratégicas que visam derrotar um inimigo, os riscos para as agências de assistência humanitária no terreno aumentam exponencialmente. É nesse momento em que uma linha vermelha brilhante deve ser traçada.
Uma maior preocupação com relação à segurança significa a redução do acesso das organizações humanitárias aos lugares onde a população pode carecer terrivelmente de assistência humanitária. Observando os países onde o CICV realiza algumas de suas maiores operações — Afeganistão, Iraque, Somália ou Iêmen — fico chocado ao ver como poucas agências têm, de fato, condições de obter acesso regular às populações e de realizar suas operações independentes. Algumas pessoas podem questionar o valor da ação humanitária independente, neutra e imparcial nas guerras de hoje. No entanto, como organização presente e ativa em conflitos por quase 150 anos, incluindo aqueles lutados por insurgentes, sabemos que esses princípios nos permitem chegar, assistir e buscar proteger as pessoas que estão em meio a um conflito armado.
Uma pequena faceta conhecida de nossas atividades no Afeganistão ilustra o valor da ação humanitária independente. Desde 2007, o CICV tem conseguido organizar a passagem segura de trabalhadores do Ministério da Saúde do Afeganistão e da Organização Mundial da Saúde que realizam as vacinações contra a pólio nas crianças no sul do país. Esse espaço seguro é negociado com o Talibã e respeitado pelas forças de segurança norte-americanas, da Otan e afegãs. O CICV facilita regularmente o translado de feridos e operações de entrega de reféns no Afeganistão. Operações desta natureza são possíveis devido a que todas as partes envolvidas no conflito sabem que o CICV não toma o partido e intervém estritamente no âmbito humanitário.
O modus operandi comprovado que o CICV aplica não é o mesmo de outros atores humanitários. A assistência comunitária é muito diversa em sua abordagem e uma revisão honesta de suas várias práticas e de seus efeitos é necessária. Noto um crescente pessimismo na assistência humanitária e uma nostalgia com relação ao que com frequência se chama de um encolhimento do "espaço humanitário". De fato, nossa experiência nos conta que simplesmente não existe um "espaço humanitário" pré-estabelecido e protegido.
Os conflitos armados de hoje são longos e fragmentados. No leste da República Democrática do Congo, o CICV interage com 40 facções ou grupos armados diferentes. Em situações como essa, o espaço necessário para a ação é criado diariamente e com o tempo: ao construir relações; ao não dar como certa sua aceitação; ao combinar as palavras com os atos; ao adotar uma abordagem baseada em princípios e segui-los com disciplina. O CICV acredita em uma neutralidade consistente e independente como maneira de construir a confiança.
Esta não é a única maneira de envolver-se com a ação humanitária, mas as agências não podem ter tudo o que querem: um dia pedir escolta armada para chegar às populações necessitadas e no outro criticar as forças militares por não distinguirem entre os âmbitos humanitário e político-militar não é uma solução. Na verdade, essa mesma inconsistência cria problemas futuros em termos de percepção e de confiança. Os profissionais humanitários não podem simplesmente fazer acusações e excluir suas próprias escolhas e ações do debate.
Considerando os perigos, acredito que seja essencial que as pessoas responsáveis por tomar decisões políticas e militares confrontem seriamente as consequências abrangentes de tornar a assistência humanitária parte integral das operações de contrainsurgência. As organizações humanitárias, por outro lado, devem debater as consequências de suas escolhas de uma maneira mais autocrítica e honesta e genuinamente decidir como querem operar. Caso não façam isso, continuarão enfraquecendo a segurança dos profissionais humanitários e, mais significantemente, isolando e pondo em perigo as vítimas do conflito armado.
*Pierre Krähenbühl é diretor de Operações do CICV. Artigo publicado originalmente na página do CICV em português.
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