Para entender o "fenômeno Lula"
O Brasil já não é mais o mesmo. Uma grande mudança está em curso no país. O bordão "nunca antes na história deste país" tantas vez dito pelo presidente Lula se afirma como uma realidade de mudanças profundas na democracia brasileira.
Mudanças estas que nem sempre são de fácil percepção. Entender o "fenômeno Lula" é um exercício difícil, que foge muitas vezes a "velhas fórmulas" interpretativas, e geram muitas vezes análises incompletas ou imprecisas, que não conseguem vislumbrar a totalidade do processo em curso.
Inegavelmente o Brasil passou por importantes avanços, promovido por uma combinação de ações do governo federal, tais como as políticas sociais, que geram uma importante mudança política no país. Para quem tem dúvidas destas mudanças, como explicar que um presidente e um governo que em oito anos de gestão sofreu ataques diários da velha mídia e mesmo assim conta com índices de aprovação recordes e está prestes a eleger sua sucessora?
Este não é um processo consolidado e livre de contradições, avanços e recuos. A provável vitória de Dilma nas eleições será o passo seguinte na consolidação de uma nova realidade político-social no país. A cidadania e a ampliação dos mecanismos de democracia e participação estarão no centro da pauta.
Para tentar auxiliar neste esforço de compreensão da mudança de sentido histórico que o Governo Lula está produzindo no Brasil, este blog publicará uma série de artigos que buscam analisar e apontar elementos destas mudanças, começamos com um artigo de Daniel Aarão Reis. Para acompanhar os demais artigos, acesse a tag Fenômeno Lula
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Uma grande inversão
Por Daniel Aarão Reis
A disparada de Dilma Roussef nas pesquisas de opinião pública têm suscitado interpretações diversas.
Duas constatações mobilizam os comentaristas: a primeira é a popularidade do governo, atingindo patamares de quase unanimidade, se computados como favoráveis os que avaliam o desempenho de Lula como ótimo, bom ou regular. Depois de oito anos, trata-se de algo raro.
A segunda constatação é a capacidade de transferência de votos do presidente. Também não é algo comum. O comum é o inverso.
Líderes de expressão nem sempre conseguem “fazer” os sucessores. Isto se deve, em parte, à vontade deles mesmos, têm medo que os herdeiros possam fazer sombra à sua liderança, apagando-os da história. Leonel Brizola era craque nisto: nunca elegeu um sucessor, embora saindo de governos com alto índice de popularidade.
O mesmo aconteceu na sucessão de FHC. Embora desgastado, foi notório que ele achava graça em transferir a faixa presidencial para o líder operário, mesmo porque estava convencido de que a gestão deste seria um fracasso, favorecendo, quem sabe, a sua volta ao poder. Quem pagou o pato foi José Serra que até hoje guarda rancor pela “traição” do chefe político do PSDB. No entanto, mesmo que os líderes invistam na escolha de sucessores, a transferência de votos nem sempre se dá, ou se dá de forma tão parcial que os herdeiros perdem as eleições.
Ora, o que surpreende nesta campanha eleitoral, é a capacidade de transferência de votos de Lula para Dilma. Esta era uma personagem desconhecida em termos eleitorais.
Sua vocação era outra: a de servidora pública, empenhada na gestão de empresas estatais ou planos de desenvolvimento.
Quando Lula sacou o nome de Dilma, e o apresentou ao distinto público, não faltaram análises de que o homem não queria eleger o sucessor, no caso, sucessora. Escolhera um nome anódino para ter uma derrota eleitoral honrosa, evitando sombras em sua popularidade.
Mas não foi isto que aconteceu.
Lula investiu na herdeira, pessoalmente e com a máquina pública.
Os resultados não se fizeram esperar e até agora assombram os analistas.
O que dizer destas evidências?
Os mais simplórios, como sempre, denunciam sombrias manipulações. É uma velha cantilena, de direita e de esquerda. Quando o eleitorado não acompanha suas propostas é porque está sendo manipulado. Para a velha UDN, era Vargas o grande manipulador.
Para as esquerdas, depois da ditadura, era a TV Globo que orquestrava as mentes.
A conclusão é sempre a mesma: as pessoas não sabem votar!
Multidões passivas, idiotas! A idiotice, no caso, é da interpretação, incapaz de compreender a complexidade do processo histórico.
Uma outra linha interpretativa foi importada de análise feita nos EUA a propósito da eleição de Bill Clinton. Um gênio teria formulado a frase: é a economia, seu estúpido!
Queria dizer com isto que o eleitorado estadunidense estaria votando de acordo com seus interesses econômicos. Como Clinton falou, e muito, do assunto, ganhou as eleições com folga.
Transportada para o Brasil, a tese poderia ser assim traduzida: a maioria do eleitorado brasileiro, sobretudo as classes populares, estariam votando com o bolso, ou seja, como os governos de Lula as beneficiaram economicamente, elas tenderiam a manter uma fidelidade canina ao benefactor.
A análise não é destituída de fundamento. Com efeito, os interesses econômicos são um ingrediente importante nas escolhas de qualquer eleitorado. Mas, se o ser humano não vive sem pão, é conhecido o bordão que “nem só de pão vivem os humanos.”
A hipótese que sustento é que a aprovação do governo Lula e a sua inusitada capacidade de transferência de votos reside num processo mais profundo: o acesso progressivo das classes populares à cidadania. Lula é a expressão maior disso. Ele é visto como o político que promoveu como ninguém este acesso. Isto tem a ver com bens materiais, sem dúvida. Mas há outros bens, simbólicos, mais importantes que o pão nosso de cada dia. E é isto que as direitas raivosas e as esquerdas radicais não percebem.
As pessoas comuns e correntes, desde os anos 1980, e cada vez mais, começaram a achar graça nas instituições e nas lutas institucionais. Politica, que era coisa de brancos ricos, começou a ser também de pardos, negros, índios e brancos pobres. Esta é uma novidade óbvia, senhores e senhoras das elites brancas (a expressão é de Cláudio Lembo, líder conservador). Se Vossas Excelências puserem o ouvido no chão, talvez sejam capazes de ouvir o tropel que se aproxima.
Se olharem para o mar, vão ver a tsunami que vem por aí. Na história desta república, só houve uma coisa parecida com o que está ocorrendo agora, foi antes de 1964. Entretanto, na época, os movimentos populares queriam muito e muito rápido. Não deu. Veio o golpe, paralisou e reverteu o processo. Agora, não. O tropel vem comendo pelas bordas, com paciência e moderação, devagar e sempre, mas a fome destas gentes é insaciável.
Quando as pessoas comuns compreendem os benefícios da democracia, querem para elas também. É simplório imaginar que tudo se esgota no pão. O pão é gostoso, quem não gosta de comer?
É mais do que isto, porém: os comuns querem a cidadania. Plena. Querem jogar o jogo como gente grande, como antes só os brancos ricos faziam. Uma grande inversão. Vai dar? Não vai dar? Veremos.
Mas uma coisa é certa: não vai ser tão fácil deter esta onda como em 1964.
*Daniel Aarão Reis é Professor de História Contemporânea da UFF
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Postado por
ERick
em
9/19/2010
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