A igualdade não é uma bala de prata
Por José Graziano da Silva no Valor Econômico
Diferente da esfera política – onde a democracia requer, de saída, a equivalência consagrada no binômio a cada cidadão um voto – na esfera econômica o pleito da igualdade dissolve-se em utopia se não for materializado em metas de avanços progressivos.
Não existe bala de prata nesse caminho.
O rumo de um governo comprometido com a justiça social consiste em perseguir, permanentemente, o ideal republicano de garantir, ao menos, um ponto de partida igual para todos. No entanto, a igualdade não pode ser tomada como um fetiche de boa sociedade.
Comunidades mais pobres e primitivas se mostravam menos desiguais que as modernas economias do nosso tempo. É discutível, porém, que aquele padrão de vida fosse preferível ao atual. O legado da história nos deixa uma opção: avançar e corrigir.
No Brasil, o desafio hoje é assegurar às pessoas mais pobres direitos e acessos que permitam ascender a um padrão de vida mais digno.
Ainda que isso esteja distante da “igualdade absoluta”, diferentes pesquisas são unânimes em mostrar a importância dos ganhos obtidos nesse percurso até agora.
Em países em desenvolvimento como o Brasil é imperativo crescer para poder gerar empregos; e os empregos formais representam hoje a primeira aproximação indispensável de um Estado de BemEstar Social. Mais de 13 milhões brasileiros ingressaram no mercado de trabalho formal entre 2003 e 2010, um aumento de quase 50% segundo levantamentos da Caged\/ Ministério do Trabalho.
Reverter a engrenagem da exclusão acentuada nos anos 80 e 90 é outro requisito incontornável.
Dados da PNAD constatam forte redução da pobreza. A proporção de brasileiros com renda mensal per capita inferior a meio salário mínimo caiu de 43% da população em 2003 para 29% em 2008. Em números absolutos, mais de 24 milhões de pessoas superaram a pobreza no período.
A classe media também aumentou.
De 43% da população em 2003 passou a 54% em 2009, de acordo com a FGV. A desnutrição infantil em crianças menores de cinco anos foi reduzida de 13% para 5%, entre 2003 e 2008, segundo o Ministério da Saúde.
O primeiro Objetivo de Desenvolvimento do Milênio, de reduzir à metade a fome e a pobreza extrema até 2015, já foi alcançado e consagrou algumas ferramentas de política social enfeixadas no guarda-chuva do Fome Zero. Voltadas para a promoção da segurança alimentar, incluem ações que vão do Bolsa Família à agricultura familiar e que se tornaram uma referência para iniciativas semelhantes em diversos países em desenvolvimento.
Essas são evidencias de uma estratégia bem sucedida de reconciliação do crescimento com justiça social, o que, como sabemos, não decorre de automatismos de mercado, exigindo políticas de Estado para vingar.
O Brasil cresceu em média 3,6% desde 2003 (apesar do resultado negativo de 0,2% em 2009, decorrente da crise internacional).
Ao contrário dos ciclos anteriores de expansão, desta vez a “divisão do bolo” ocorreu simultaneamente aos avanços do PIB. Podemos dizer que finalmente experimentamos o gosto de um ciclo de forte crescimento econômico com desenvolvimento social. E parece que os brasileiros gostaram dessa mistura, a julgar pelo grande respaldo da opinião pública ao Governo e a figura do presidente da República ainda que em final de
mandato.
No entanto, nem tudo são flores.
Em seu relatório regional, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) destaca a contribuição de programas de transferência condicionada de renda ao combate à pobreza e à fome, mas também nota que a desigualdade continua muito alta no Brasil, assim como em toda a América Latina e Caribe, considerada a região mais desigual do planeta.
A elevada desigualdade brasileira decorre da má distribuição dos ativos que permitem gerar rendas, especialmente capital e terra. Se quisermos diminuir o fosso que hoje separa os ricos dos pobres e promover uma distribuição mais justa da renda temos que mudar as condições de acesso e usufruto a esses ativos.
O Brasil tem progredido no equacionamento da questão agrária, de modo especial no apoio à agricultura familiar. Também tem obtido sucesso em melhorar o acesso dos filhos dos mais pobres à educação e saúde, o que se espera possa ter um impacto futuro na distribuição da renda (infelizmente só na próxima geração).
Mas há que se reconhecer que ainda é preciso avançar muito no principal instrumento que permitirá uma melhoria imediata sobre a distribuição dos fluxos de renda: uma reforma tributária que aumente a progressividade dos tributos e reforce laços de solidariedade tratando de forma desigual aos desiguais.
Hoje fazemos o inverso: abstraindo os sonegadores, todos brasileiros pagam os mesmos impostos sobre bens de consumo e isso penaliza os mais pobres. Cálculos do professor Amir Khair, um dos maiores especialistas na matéria, mostram que quem ganha até dois salários mínimos no Brasil paga 49% em tributos e os que ganham acima de 30 apenas 26%.
A isenção de impostos sobre produtos da cesta básica e a redução do IPI para materiais de construção e outros bens de consumo popular – decisões tomadas pelo governo Lula no auge da crise mundial e que podem ser emuladas no ICMS dos estados sinalizam um caminho a ser institucionalizado.
Como observa Khair em artigo recente, “a desoneração gera aumento do poder aquisitivo, com elevação do consumo reprimido de outros produtos, compensando a perda aparente de arrecadação”.
Khair também chama a atenção para a necessidade de elevar alíquota do imposto sobre heranças, tributada com alíquota de 4%, inferior ao cobrado internacionalmente, que pode superar em alguns países a 50%. O imposto sobre herança é outro debate a ser retomado se quisermos agir sobre as estruturas que reproduzem a desigualdade e permitir que as novas gerações nasçam num berço menos desigual.
E não vamos nos esquecer que o Brasil não tem imposto equivalente ao IPTU para a propriedade rural, permitindo que os grandes detentores de patrimônios rurais, em alguns casos formados por milhares de hectares, continuem sem pagar impostos.
Deter a concentração de terra e promover o acesso mais equilibrado a ativos, não apenas terra, mas também infraestrutura, financiamento e capacitação técnica, é outro degrau básico de aproximação do Estado de Bem Estar Social.
Também falta um conjunto de leis que regule a relação entre a agroindústria e os fornecedores, como já existe nos países desenvolvidos, para garantir a participação de autônomos e agricultores familiares nas cadeias produtivas.
Ações como essas ajudam a consolidar, como aconteceu com a inclusão do direito à alimentação na Constituição, os avanços conquistados nos últimos anos para evitar retrocessos. Esses são os desafios do novo ciclo, para que o Brasil continue avançando no rumo de uma sociedade mais igualitária.
Um governo comprometido com a justiça social deve garantir um ponto de partida igual para todos
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