Ser adolescente no Brasil virou uma situação de risco


Sulamita Esteliam

Na avenida beira-canal, em Boa Viagem, bem na esquina com a Ribeiro de Brito, na Zona Sul do Recife, há um acampamento que espelha uma realidade incômoda. Ali, vigiadas por uma ainda jovem e bem-fornida senhora, meia dúzia de crianças, da mais tenra idade à adolescência, se empenha em conseguir alguns trocados. Os alvos preferenciais são os motoristas que aguardam o sinal verde para seguir em frente ou dobrar à direita rumo ao trabalho, à residência, ao shopping, aeroporto ou outro destino qualquer. Algumas tentam lavar o parabrisas dos automóveis, outras mendigam, simplesmente. Até mesmo uma balinha, um bombom angariado, é entregue à capataz. Impassível e solenemente instalada em uma cadeira surrada, que chora o esforço de sustentar o traseiro colossal que a comprime sobre a calçada.

Faça chuva ou faça sol, logo nas primeiras horas da manhã, lá está a trupe maltrapilha, esfregando em nossos olhos classe-média o triste espetáculo da miséria execrável. O expediente se encerra quando a noite se anuncia.
Não se sabe se a tal mulher botou filhos no mundo para explorá-los, ou se se vale da miséria alheia para cobrir as próprias necessidades materiais, sem queimar suas abundantes calorias. Muito provavelmente, se questionada, a senhora alegará o “império da necessidade” para explicar sua atitude deplorável. Se confrontada com a ilegalidade, acenará com o desconhecimento.

Situações semelhantes proliferam, aos milhares, pelas esquinas de nossas capitais e áreas metropolitanas, sobretudo. Desafiam nossa compreensão, cotidianamente, num tempo que parece não ter princípio, nem fim. São os subprodutos de um sistema perverso, que gera riquezas e multiplica desigualdades. Desconhecem as políticas públicas que, por mais que se renovem e avancem, se revelam insuficientes.

Aquelas crianças do bairro-símbolo da Zona Sul do Recife nasceram sob o vigor do ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente, fruto da Constituição Cidadã, de 1988. A lei que o gestou acaba de completar 20 anos, dia 13 de julho. É um marco na defesa dos direitos humanos em nosso país. Do ponto de vista legal, alterou os paradigmas no tratamento de crianças e adolescentes, antes vistos como incapazes, hoje como sujeitos de direito. Sob o aspecto social, há, sim o que comemorar: a redução da mortalidade infantil em 58% e a retirada de cinco milhões de crianças de postos de trabalho, por exemplo. Temos, seguramente, a legislação mais avançada do planeta em termos de proteção social da infância e da adolescência. Só precisa ser devidamente aplicada.

Não se pode fechar os olhos aos desafios, e eles são da estatura da lei. Sobretudo na educação, na saúde e na segurança.

Os meninos e meninas da beira-canal de Boa Viagem deveriam estar na escola, que é lugar de criança. Deveriam estar brincando, que é obrigação dos infantes. Deveriam ser e estar acolhidas pela família, se é que famílias há. Ao invés disso, mendigam, ou trabalham, expostas aos perigos do tráfego, a toda sorte de humilhações, doenças, violência e abusos. Estão à margem - do canal, da sociedade, da vida, como margilizados, certamente, também foram, e são, seus pais.

Na ótica dos direitos humanos, tal situação é definida como sendo “de risco” ou de “vulnerabilidade”. Brutalizadas pela pobreza, pela indigência humana e pela exclusão social, não são, apenas, alvos fáceis do preconceito, da hipocrisia, do oportunismo político, da ignorância - não raramente açulados pela mídia conservadora. São candidatas a engordar as estatísticas da violência infantojuvenil, que tanto nos preocupa – e que estimula a discussão sobre a redução da maioridade penal, ao arrepio da nossa Constituição. Estão na mira da marginalidade criminosa ou morrem como formigas, por esse e outros motivos.

Certamente, faltam políticas públicas que acolham a família, que a instruam sobre seus direitos, e deveres, de cidadania. Há quem avalie que falta, principalmente, diálogo que favoreça a aglutinação dos esforços do poder público, nos três níveis, entre si e com as organizações não-governamentais, os segmentos da Justiça responsáveis pela observância e aplicação da lei, a sociedade civil organizada – pelo menos aquela parcela que enxerga além do próprio umbigo. O juiz Paulo Brandão, da Vara da Infância e da Juventude do Recife e membro do Cica – Centro de Integração da Criança e do Adolescente, se insere nesse time: “É preciso menos discurso e mais ação. Trabalhar em redes para potencializar os esforços, formar comitês locais para solução de conflitos. O centro não são as instituições, são as crianças e os adolescentes”, ensina.

É preciso acordar para fazer valer o ECA e não mutilá-lo como querem alguns. Ser adolescente no Brasil tornou-se risco de vida. Aqui, 46% dos casos de mortes por homicídios se localizam na faixa etária de 12 a 18 anos. São dados oriundos de pesquisa da Secretaria Nacional de Direitos Humanos em parceira com o Fundo para as Nações Unidas para a Infância – Unicef, Observatório de Favelas e Laboratório de Análise da Violência da Uerj – Universidade Federal do Rio de Janeiro. Divulgada em junho de 2009, calcula-se que, a prevalecerem as condições constatadas em 2006, data da pesquisa, 33.504 mil jovens dessa faixa etária terão sido assassinados até 2012. É um verdadeiro genocídio, que atinge, principalmente, os de sempre: jovens do sexo masculino, negros e pobres.

O Nordeste tem quatro dentre os 10 municípios brasileiros, acima de 100 mil habitantes, com mais alto IHA - Índice de Homicídios na Adolescência. Três são pernambucanos, pela ordem: Olinda em quarto lugar, com, 6,5 mortes para grupo de mil adolescentes de 12 a 18 anos; Jaboatão dos Guararapes, em oitavo, com 6,0 e Recife em décimo, também com 6,0. Considerando-se apenas as capitais, Maceió capital das Alagoas, que ocupa o nono lugar geral, com 6,0, é a mais violenta. É seguida pelo Recife e Rio de Janeiro; por Vitória, Porto Velho, Belo Horizonte, Cuiabá, Curitiba, João Pessoa e Salvador. Os indicadores de São Paulo e Região, incluindo Campinas, surpreendentemente, colocam estes municípios abaixo das 20 primeiras na posição geral, e a capital paulista em 24º lugar dentre as capitais. A lista dos 10 municípios com maior índice é encabeçada por Foz do Iguaçu, no Paraná, com 9,7, seguida pela mineira Governador Valadares, com 8,5, e por Cariacica, no Espírito Santo, com 7,3. Sinal de alerta importante: os piores índices se localizam, em sua maioria, nas cidades de porte médio.

O IHA estima o risco de mortalidade de adolescente por homicídio. A ideia é que a informação ajude a mobilizar as pessoas para a gravidade do problema, que assume proporções de limpeza social e étnica. Ao mesmo tempo, pretende-se o monitoramento do fenômeno e a avaliação de políticas públicas preventivas e para reduzir a mortalidade adolescente. Este deveria ser o foco dos debates sobre os 20 anos do ECA: como barrar o crescimento da violência que vem dizimando nossos jovens, nosso futuro. Não é o que se vê em nossa mídia convencional.

Os dados oficiais preocupam, também no terreno da violação de direitos. Pior, da parte de quem deveria zelar por eles – a própria Justiça. De 1996 a 2006, o número de adolescentes privados de liberdade deu um salto de 363%: passou de 4.245 para 15.436, segundo a Secretaria Nacional de Direitos Humanos. Note-se que isso representa poucos mais de 3% da população carcerária adulta, estimada em 420 mil presos em 2007. Essa evolução, contudo, não espelha a tendência – mundial, aliás – de crescimento da participação de adolescentes em crimes violentos e de sua inserção em bandos e quadrilhas. Tais números estão contaminados pela aplicação indevida de medidas restritivas, segundo a própria secretaria.

Em 2009, 86% dos cerca de 18 mil jovens sob medida social-educativa estavam reclusos, aponta pesquisa nacional coordenada pela Universidade Federal da Bahia para o Ministério da Justiça. De acordo com a Subsecretaria Nacional de Promoção aos Direitos da Criança e do Adolescente, contudo, mais da metade não deveria estar presa, pois não praticou infração que signifique “grave ameaça ou atentado à vida”, conforme reza o Art. 122 do Estatuto. A maioria executou crimes contra o patrimônio – roubo ou furto – e está em sua primeira internação. Também aqui, a imensa maioria é formada pelos filhos da periferia excluída, aonde o Estado, normalmente, só aparece para mostrar a sua face repressora.

Ou seja, são vítimas em quaisquer circunstâncias: da família desagregada, da exclusão social, da violência a que estão expostos nas ruas - e da qual não escapam quando praticam infração da lei. Submetidos à Justiça, acabam em instituições que deveriam cuidar da recuperação, mas que não estão preparadas para a tarefa e, não raro, fazem uso da violência física como medida educadora. E aí, com perdão da imagem, o cachorro volta a correr atrás da própria calda.

Sulamita Esteliam é jornalista e escritora. Autora dos livros Estação Ferrugem, romance-reportagem que resgata a história da região operária de Belo Horizonte-Contagem, Vozes, 1998; Em Nome da Filha – A História de Mônica e Gercina, sobre violência contra mulher em Pernambuco; e o infantil Para que Serve Um Irmão, os dois últimos ainda inéditos. Apresenta, nas manhãs de sábado, o programa Violência Zero pela Rádio Olinda AM – 1030. sulamitaesteliam@hotmail.com//esteliam@oi.com.br

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