Flávio Aguiar
Depois que os portugueses chegaram ao futuro Brasil, formaram-se duas visões complementares sobre a nova terra. Algumas descrições cobriam a “nova” terra com sinais paradisíacos, a partir mesmo da própria carta redigida por Pero Vaz de Caminha ao rei D. Manuel. O clima ameno, as populações nativas num estado semelhante ao que Adão e Eva deveriam estar ao sair do Éden bíblico, as frutas suculentas e estranhas para os europeus, entre muita outra coisa, por exemplo. Tudo isso foi estudado no notável “Visão paraíso. Os motivos edênicos no descobrimento e colonização do Brasil”, de Sérgio Buarque de Hollanda.
Por outro lado, motivos infernais também passaram a “povoar” a nova terra: seus jaguares, suas jibóias e sucuris gigantescas, o fumo por parte dos nativos, sua “indolência” na descrição dos europeus, tudo isso eram “coisas do demônio”. Também a situação social entrou nessa classificação, consagrando e criando a dicotomia. André João Antonil (pseudônimo do padre toscano João Antonio Andreoni) escreveu em seu livro “Cultura e opulência do Brasil por suas Drogas e Minas” que nossa terra era “o inferno dos negros, o purgatório dos brancos e o paraíso dos mulatos e das mulatas”. Na verdade, o que Antonil apontava era a formação de uma nova população mestiça em todas as classes sociais, mais afeita às coisas da terra do que os europeus recém-chegados (que tinham a idéia de voltar à sua terra de origem) e do que os africanos escravizados ou seus descendentes. Mas a dicotomia pegou: Brasil, paraíso e inferno simultaneamente. Até mesmo porque na cosmogonia medieval (ainda viva nos tempos coloniais e até hoje, aqui e ali) a saída do inferno ficava no sopé do monte do paraíso terreal.
Hoje, ressalvadas as proporções, tem-se a mesma impressão sobre o Brasil, lendo-se a mídia convencional estrangeira ou a nossa, nacional. Para aquela, se não estamos no melhor dos mundos, estamos fora do pior deles, pois o Brasil é um dos únicos países em que a pobreza está diminuindo ao invés de aumentar, e apesar das fragilidades e distâncias sociais continuarem de monta. Digamos que na imprensa internacional o Brasil é descrito como atravessando um ciclo virtuoso, com a melhora da situação social fortalecendo a democracia e vice-versa. Não que não haja problemas referidos, é óbvio. Mas a moldura é aquela. E isso vale para jornais e publicações que vão da centro-direita à centro-esquerda (para usar uma classificação vigente nas próprias publicações européias, pelo menos).
Já entrando pela nossa congênere nacional, quanto ao Brasil só dá m... , para referir uma palavra do calão que serve como autêntico eufemismo para o que descreve do nosso país. O presidente Lula ora aparece como um parvo, ora como um monstro, ora como apequenado, ora como onipotente. O caso Sarney – agora em vias de ser remetido a um sussurro (silêncio seria demais de vergonhoso) obsequioso por ter se enredado no caso Arthur Virgílio – começa a ceder passo ao caso da ex-secretária da Receita Federal versus a ministra chefe da Casa Civil. E isso é o de menos. Dá-se ao contrário: não é que não haja virtudes a se referir sobre o país. Mas elas são sistematicamente escamoteadas. E isso vale para toda a nossa imprensa convencional (com exceção de Carta Capital e mais alguma que agora me escape), da direita à direita, porque todas as outras estão neste canto do ringue, acuadas ou desferindo murros à esquerda e à esquerda.
Brasil, paraíso, inferno, inferno, paraíso: a dicotomia continua. Mas o interessante é que na última moldura política a nossa extrema esquerdireita também entrou em ação. Refiro-me aos internautas que, propondo-se de esquerda, ativam ou repetem toda a cantilena da direita. Recentemente, por exemplo, recebi num de meus endereços da internete interessante mensagem do sr. Pedro Porfírio, ativíssimo crítico do governo Lula, pretendendo-se pela esquerda, contra Sarney e sua “defesa pelo governo”. Vem até uma convocatória para manifestações nacionais, no dia 15/08, contra Sarney, etc. Pois na mensagem consta um libelo contra Sarney, o governo e seus programas sociais, assinado pelo General de Exército Gilberto Barbosa de Figueiredo, presidente do Clube Militar.
Pasmo, não pude deixar de ler, entre outras bobagens, que o programa Bolsa Família é “o maior programa de compra de votos do mundo”, que o governo quebra “o espírito combativo que era marca do movimento estudantil”, que “eliminou-se toda a possibilidade de agitações de rua indesejáveis” (por um momento pensei que o general e o Pedro Porfírio estavam se referindo ao golpe de 64, mas não, era ao governo Lula mesmo).
Confesso que o nojo subiu-me à cabeça. Já andava cansado de ler em comentários de leitores nas páginas na internete dos jornais tradicionais a defesa dos golpistas de Honduras. Mas agora que se queira misturar tantos alhos e bugalhos numa pretensa crítica “avançada” ou “progressista” ao governo Lula, foi demais.
Diz-me com quem andas, e dir-te-ei quem és. Aconselho esses notáveis escribas e políticos que enveredem pelo mesmo caminho a visitar o site do Clube Militar (www.clubemilitar.com.br) . Lá encontrarão, entre pressurosas defesas do golpe em Honduras, esta interessante manifestação do seu general presidente sobre um brasileiro ilustre, feita em 26 de janeiro de 2007 e também publicada na revista do Clube, n* 424, de abril daquele ano, durante um almoço que homenageava este personagem de nossa história:
“a [sua] luta continua sendo uma batalha em prol da democracia, na medida em que representa a verdade contra a mentira, a dignidade contra a infâmia, a honradez contra a vilania, o patriotismo contra a traição”.
O patriota em questão, também homenageado na ocasião por discurso do ex-senador Jarbas Passarinho, era o Coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, ex-comandante do DOI-CODI, em São Paulo.
Sem mais comentários.
Publicado originalmente em Carta Maior
Depois que os portugueses chegaram ao futuro Brasil, formaram-se duas visões complementares sobre a nova terra. Algumas descrições cobriam a “nova” terra com sinais paradisíacos, a partir mesmo da própria carta redigida por Pero Vaz de Caminha ao rei D. Manuel. O clima ameno, as populações nativas num estado semelhante ao que Adão e Eva deveriam estar ao sair do Éden bíblico, as frutas suculentas e estranhas para os europeus, entre muita outra coisa, por exemplo. Tudo isso foi estudado no notável “Visão paraíso. Os motivos edênicos no descobrimento e colonização do Brasil”, de Sérgio Buarque de Hollanda.
Por outro lado, motivos infernais também passaram a “povoar” a nova terra: seus jaguares, suas jibóias e sucuris gigantescas, o fumo por parte dos nativos, sua “indolência” na descrição dos europeus, tudo isso eram “coisas do demônio”. Também a situação social entrou nessa classificação, consagrando e criando a dicotomia. André João Antonil (pseudônimo do padre toscano João Antonio Andreoni) escreveu em seu livro “Cultura e opulência do Brasil por suas Drogas e Minas” que nossa terra era “o inferno dos negros, o purgatório dos brancos e o paraíso dos mulatos e das mulatas”. Na verdade, o que Antonil apontava era a formação de uma nova população mestiça em todas as classes sociais, mais afeita às coisas da terra do que os europeus recém-chegados (que tinham a idéia de voltar à sua terra de origem) e do que os africanos escravizados ou seus descendentes. Mas a dicotomia pegou: Brasil, paraíso e inferno simultaneamente. Até mesmo porque na cosmogonia medieval (ainda viva nos tempos coloniais e até hoje, aqui e ali) a saída do inferno ficava no sopé do monte do paraíso terreal.
Hoje, ressalvadas as proporções, tem-se a mesma impressão sobre o Brasil, lendo-se a mídia convencional estrangeira ou a nossa, nacional. Para aquela, se não estamos no melhor dos mundos, estamos fora do pior deles, pois o Brasil é um dos únicos países em que a pobreza está diminuindo ao invés de aumentar, e apesar das fragilidades e distâncias sociais continuarem de monta. Digamos que na imprensa internacional o Brasil é descrito como atravessando um ciclo virtuoso, com a melhora da situação social fortalecendo a democracia e vice-versa. Não que não haja problemas referidos, é óbvio. Mas a moldura é aquela. E isso vale para jornais e publicações que vão da centro-direita à centro-esquerda (para usar uma classificação vigente nas próprias publicações européias, pelo menos).
Já entrando pela nossa congênere nacional, quanto ao Brasil só dá m... , para referir uma palavra do calão que serve como autêntico eufemismo para o que descreve do nosso país. O presidente Lula ora aparece como um parvo, ora como um monstro, ora como apequenado, ora como onipotente. O caso Sarney – agora em vias de ser remetido a um sussurro (silêncio seria demais de vergonhoso) obsequioso por ter se enredado no caso Arthur Virgílio – começa a ceder passo ao caso da ex-secretária da Receita Federal versus a ministra chefe da Casa Civil. E isso é o de menos. Dá-se ao contrário: não é que não haja virtudes a se referir sobre o país. Mas elas são sistematicamente escamoteadas. E isso vale para toda a nossa imprensa convencional (com exceção de Carta Capital e mais alguma que agora me escape), da direita à direita, porque todas as outras estão neste canto do ringue, acuadas ou desferindo murros à esquerda e à esquerda.
Brasil, paraíso, inferno, inferno, paraíso: a dicotomia continua. Mas o interessante é que na última moldura política a nossa extrema esquerdireita também entrou em ação. Refiro-me aos internautas que, propondo-se de esquerda, ativam ou repetem toda a cantilena da direita. Recentemente, por exemplo, recebi num de meus endereços da internete interessante mensagem do sr. Pedro Porfírio, ativíssimo crítico do governo Lula, pretendendo-se pela esquerda, contra Sarney e sua “defesa pelo governo”. Vem até uma convocatória para manifestações nacionais, no dia 15/08, contra Sarney, etc. Pois na mensagem consta um libelo contra Sarney, o governo e seus programas sociais, assinado pelo General de Exército Gilberto Barbosa de Figueiredo, presidente do Clube Militar.
Pasmo, não pude deixar de ler, entre outras bobagens, que o programa Bolsa Família é “o maior programa de compra de votos do mundo”, que o governo quebra “o espírito combativo que era marca do movimento estudantil”, que “eliminou-se toda a possibilidade de agitações de rua indesejáveis” (por um momento pensei que o general e o Pedro Porfírio estavam se referindo ao golpe de 64, mas não, era ao governo Lula mesmo).
Confesso que o nojo subiu-me à cabeça. Já andava cansado de ler em comentários de leitores nas páginas na internete dos jornais tradicionais a defesa dos golpistas de Honduras. Mas agora que se queira misturar tantos alhos e bugalhos numa pretensa crítica “avançada” ou “progressista” ao governo Lula, foi demais.
Diz-me com quem andas, e dir-te-ei quem és. Aconselho esses notáveis escribas e políticos que enveredem pelo mesmo caminho a visitar o site do Clube Militar (www.clubemilitar.com.br) . Lá encontrarão, entre pressurosas defesas do golpe em Honduras, esta interessante manifestação do seu general presidente sobre um brasileiro ilustre, feita em 26 de janeiro de 2007 e também publicada na revista do Clube, n* 424, de abril daquele ano, durante um almoço que homenageava este personagem de nossa história:
“a [sua] luta continua sendo uma batalha em prol da democracia, na medida em que representa a verdade contra a mentira, a dignidade contra a infâmia, a honradez contra a vilania, o patriotismo contra a traição”.
O patriota em questão, também homenageado na ocasião por discurso do ex-senador Jarbas Passarinho, era o Coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, ex-comandante do DOI-CODI, em São Paulo.
Sem mais comentários.
Publicado originalmente em Carta Maior
Um comentário:
Se eu tivesse entrado em coma em 1999 e acordasse hoje, em 2009 e lesse o artigo do Flávio Aguiar eu me beliscaria, só pode ser comédia. A esquerda brasileira defendendo aqueles que representam o Brasil mais arcaico e atrasado: quem diria. Aguiar continua sofrível. Tadinho.
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