Os espinhos renitentes do nosso idioma



Chico Guill



Talvez um dia descobriremos que José Sarney é inocente de todas as acusações que pendem sobre ele no Senado e na mídia nacional. Mas isso não o exime da culpa de levar milhares de empresários à falência durante seu reinado na década de 1980. Os escândalos envolvendo a família do senador nos últimos anos são demasiado volumosos para que possamos suspeitar de algum complô contra ele. Tudo isso multiplica minha revolta quando lembro que a instituição que decidiu mudar minha forma de escrever tem acolhido indivíduos como José Sarney.

A última reforma ortográfica, promovida pela academia criada por Machado de Assis e outros homens valorosos, não é apenas um desastre, é uma ofensa aos cidadãos inteligentes. Era necessário inovar, sim, tirar todos os espinhos e preservar as flores da nossa língua. O que se fez foi obra de uma tesoura inapta, que passou por este frondoso roseiral mascando aqui e ali, sem nenhum critério que considerasse nossa riqueza lingüística e literária.

Tirar o acento agudo de “idéia” foi um pecado, como disse um certo entrevistado na TV. Mas há outras mudanças doloridas. A supressão de hífens e acentos obedece a uma lógica nada criteriosa. Se eram um problema para alunos distraídos ou preguiçosos, então que se suprimissem todos os hífens e acentos. Ou que se estabelecessem regras para facilitar — não para complicar ou deixar na mesma — a utilização e a leitura de palavras acentuadas ou hifenizadas. Com o modelo que a ABL apresentou, alunos e escribas em geral continuarão sofrendo a língua portuguesa, em vez de desfrutá-la.

A quem interessa uma mudança na escrita que visa melhorar as relações entre os países de língua portuguesa, além daqueles que têm um relacionamento direto com outros países de língua portuguesa? A jornalistas, exportadores, altos funcionários dos governos, isto é, no máximo 0,1 % da população desses países. Ao resto do povo brasileiro, qual o interesse real pelo idioma falado em Angola ou Moçambique? Com todo respeito a esses povos, as diferenças eram motivo de graça, de brincadeiras que, acredito, nunca fizeram um grande mal a ninguém.

A comunicação entre os países de língua portuguesa era suficientemente eficaz. Os acadêmicos talvez pensaram que estariam realmente criando uma grande unidade com esse amálgama, mas na verdade os problemas de interpretação de uma ou outra frase ocorrem em função dos estilos, da forma singular de comunicação de cada país, não das diferenças gramaticais. E estilos de linguagem não se modifica com decretos.
Não há justificativa para a mudança, exceto, talvez, o fato de que a ABL precisava mostrar serviço, e aparecer ao menos numa uma nota de rodapé para provar ao seu primeiro presidente que as solicitações de abertura estão sendo cumpridas:

“O vosso desejo”, disse Machado na inauguração da Academia Brasileira de Letras, em 1897, “é conservar, no meio da federação política, a unidade literária. Tal obra exige, não só a compreensão pública, mas ainda e principalmente a vossa constância. (...) Passai aos vossos sucessores o pensamento e a vontade iniciais, para que eles o transmitam aos seus, e a vossa obra seja contada entre as sólidas e brilhantes páginas da nossa vida brasileira”.

De minha parte, continuarei escrevendo “idéia” com acento, e “tranqüilo” com trema. Pelo menos enquanto a teimosia não afetar o meu bolso, ou até os fabricantes de teclados me tirarem definitivamente esse privilégio.



Chico Guil é escritor.

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