Guerra é guerra, dizia o torturador

Marco Aurélio Weissheimer




“Tropa de Elite” pretende ser um filme realista. Essa pretensão aparece no cartaz promocional do filme que afirma que, entre as muitas versões de uma guerra, a que é a apresentada ali é a verdadeira. Não é. A menos que se considere que testemunhos em primeira pessoa sejam um meio de acesso privilegiado à realidade. Na verdade, costumam ser um meio de acesso privilegiado à percepção de quem testemunha. Se tomarmos a narrativa baseada nas experiências do capitão Nascimento como retrato fiel do que acontece nos morros do Rio de Janeiro porque é a narrativa de alguém que participou diretamente da guerra, deveríamos fazer o mesmo com uma narrativa de um traficante que relate como vê a mesma guerra. Teríamos, então, duas narrativas, dois testemunhos, duas realidades. Valeria a mesma lógica também para o testemunho de um morador de favela que vivencia a mesma guerra.


A pretensão em transformar o testemunho do capitão do Batalhão de Operações Especiais (Bope) em representação fiel da realidade conspira logicamente contra si mesma. Mas, do ponto de vista da recepção do filme na sociedade acaba funcionando. O padrão médio dos comentários de quem vê o filme reconhece nele uma narrativa realista. Há elementos para tanto: a violência da guerra do tráfico, a tortura como prática de policiais e traficantes, a corrupção policial, a hipocrisia de setores de classe média, entre eles. O resultado final evidencia que mostrar elementos de realidade é uma condição necessária porém não suficiente para representar “a realidade”. Alguém poderá questionar: quer dizer que você (o autor destas linhas) está mais habilitado para falar da realidade da guerra do tráfico do que alguém que está na linha de frente dessa guerra?





Uma teoria cheia de buracos





Certamente que não, é a resposta. No entanto, esse texto não tem a pretensão de falar da “realidade” da guerra do tráfico, mas sim de questionar o suposto privilégio realista do testemunho de uma das partes do conflito. A fragilidade dessa pretensão fica exposta no filme. O capitão Nascimento, personagem central e condutor da narrativa, tem uma teoria própria sobre as causas da guerra e o melhor meio de enfrentá-la. Trata-se de uma teoria cheia de buracos: buracos de bala e buracos lógicos. Desde o início, a narrativa nos alerta para o fato de que “o policial também é um ser humano”, com problemas e angústias pessoais. Do outro lado da trincheira, estão os traficantes que, por oposição, são apresentados como animais ferozes que devem ser abatidos à bala, versão esta que, provavelmente, conta com a simpatia de considerável parte da sociedade.


Em um nível intermediário aparecem os policiais corruptos e os ongueiros hipócritas que consomem drogas e fazem passeatas contra a violência. E, de um modo muito lateral, aparecem algumas referências sobre o envolvimento de políticos. No meio desse pântano, a tropa do BOPE é apresentada como o que há de melhor na polícia. São os policiais melhor treinados, melhor equipados e incorruptíveis. O processo de seleção para candidatos a integrar o batalhão mostra que seus comandantes sabem quem é corrupto e quem não é, na polícia. As ações da tropa de elite, no entanto, convivem diariamente com o problema do estreito vínculo existente entre o tráfico e a corrupção policial. Mas, no filme, não incidem sobre ela. Ou seja, a tropa de elite, o que há de melhor na polícia militar, é absolutamente ineficaz para enfrentar um dos principais elos da violência. Em que sentido, pois, ela pode ser chamada “de elite”?





O argumento dos defensores da tortura





A resposta aparece no filme. Aparece já no símbolo do BOPE: a caveira, o símbolo da morte. Os policiais do batalhão são profissionais altamente treinados – melhor treinados do que o exército de Israel, assegura o capitão Nascimento – e, quando sobem o morro, o fazem de maneira profissional, só atiram para matar. As operações especiais, tal como nos é mostrado na tela, incluem tortura e execuções sumárias. A reação média de quem assiste ao filme parece aprovar tais métodos. Ela pode ser sintetizada na máxima repetida exaustivamente pelo líder da tropa: estamos numa guerra e, numa guerra, vale tudo. Ou como afirma o título de um livro sobre a ditadura militar (de autoria de Índio Vargas), “Guerra é guerra, dizia o torturador”. Sempre foi esse, em primeira e última instância, o argumento dos defensores da pena de morte, da tortura e das execuções sumárias. Essa é “a realidade”, dizem.


A “realidade” apresentada no filme atribui forte responsabilidade aos ongueiros de classe média, e aos jovens da classe média carioca em geral, pela violência do tráfico. “Nós temos que limpar a sujeira que vocês fazem”, diz um dos aspirantes a ser futuro comandante do batalhão. Esse mesmo personagem irrompe em uma manifestação de uma ong contra a violência, enchendo de porrada um destes jovens. Em relação aos policiais corruptos, no entanto, o que vemos é que eles são impedidos de entrar no BOPE, mas liberados de qualquer outra condenação. Tudo se passa como se a existência de policiais mal pagos, mal treinados, mal equipados e corruptos fosse uma condição para a própria existência da tropa de elite que, sem esconder seu desprezo pela “ralé” do resto da polícia, acaba se constituindo em uma espécie de grupo paramilitar. Um grupo que tem vida própria e que está fora do Estado, como fica evidenciado na cena do enterro de um dos membros do grupo, quando a bandeira nacional é encoberta pela caveira do BOPE. A mensagem aí é forte é explícita: o Estado faliu, vocês precisam de nós.





De leitor de Foucault a matador





Há um outro elemento que conspira contra o suposto caráter “de elite” da tropa. Desde o início do filme, o capitão Nascimento nos conta que quer largar aquela vida e está em busca de um sucessor. O escolhido, no final, é o mais equivocado dos personagens. André Matias estuda Direito na “melhor faculdade do Rio de Janeiro”, é leitor de Foucault e convive com os “ongueiros” detratados no filme. Desde o início, o capitão Nascimento afirma que essa combinação era algo incompatível para um policial, principalmente para um integrante do BOPE. Matias se apaixona por uma ongueira, sobe o morro, convive com traficantes e oculta sua identidade de policial de seus colegas de faculdade. Resultado: acaba contribuindo para a morte de três pessoas. Sua foto durante uma ação policial é publicada nos jornais e sua identidade é revelada. Ele parece não dar bola para o fato, não avisa a ninguém, e acaba enviando um colega e amigo para a morte.


Esse verdadeiro “gênio” acaba sendo o sucessor do capitão Nascimento na tropa de elite. Na cena final, ele é batizado no comando com uma doze na mão, pronto a explodir a cara do traficante que matou o seu amigo (morte pela qual ele também foi responsável), em mais uma execução sumária. Deixou de ser um ingênuo, tornou-se um filho da caveira, pronto para matar. Alguns críticos disseram que o filme é uma peça publicitária do BOPE. Uma publicidade esquisita, pois o que aparece é um grupo paramilitar que age à margem da lei, usa a tortura como método e pratica execuções sumárias impunemente. É isso? É preocupante, para todos aqueles que não desistiram de idéias como democracia, lei e direito que essa representação da “realidade” seja aplaudida em algumas salas de cinema. Os aplausos têm endereço certo: seu objeto de desejo é a caveira do BOPE.





Entre as ongs e os paraísos fiscais





O privilégio dado ao testemunho do capitão Nascimento e a pretensão de apresentá-lo como uma fiel expressão da realidade mal consegue esconder outras facetas dessa realidade que, ou aparecem muito lateralmente no filme ou simplesmente não aparecem. O tráfico de drogas é hoje uma das indústrias mais poderosas do mundo, com braços no sistema financeiro, político, jurídico e empresarial. Enfatizar a responsabilidade de ongs na cadeia da violência e silenciar, por exemplo, sobre o papel dos paraísos fiscais na lavagem de dinheiro advindo do tráfico denuncia essa pretensão de realismo. Um filme não tem a obrigação de falar de tudo ao mesmo tempo, poderá dizer alguém. É verdade. E é justamente por isso que, aquilo que ele retrata, é apenas o testemunho de alguém envolvido em uma guerra. Querer alçar esse testemunho à condição de “o mais fiel retrato da realidade” é um passo gigantesco que, dado o conteúdo do testemunho, flerta perigosamente com a máxima: “guerra é guerra, dizia o torturador”.

Fonte: Carta Maior

Nenhum comentário: