Não é segredo para ninguém que há uma crise de legitimidade do sistema político brasileiro, tal como ele está organizado. O início do processo eleitoral para as eleições municipais no Brasil recoloca esse debate. Por que o sistema político brasileiro tem tão baixa legitimidade e o que fazer para melhorá-la? O principal motivo pelo qual essa crise existe decorre de uma fortíssima influência do poder financeiro nas eleições. Da maneira como o sistema de financiamento de campanha está organizado no Brasil não existe nenhum limite à influência do poder econômico sobre o sistema político. A falta de uma lista fechada determinada pelos partidos anula qualquer prioridade no sistema eleitoral e abre um caminho indiscriminado para que os candidatos mais bem financiados se tornem os majoritários. Uma vez eleitas, essas pessoas passam a defender interesses completamente particulares, tentando ou favorecer os interesses de lobbies específicos ou os próprios interesses individuais. É esse o caminho para a anulação do sistema de representação de interesses públicos e o prevalecimento do sistema de representação de interesses privados. Que fazer para mudar esse sistema?
Duas questões estão colocadas para a melhora do sistema de representação política no Brasil: a primeiro delas é o estabelecimento de um sistema público de financiamento de campanha com listas fechadas e financiamento público; e a segunda é um maior combate à corrupção com a participação da sociedade civil. Permitam-me elaborar com um pouco mais de vagar ambas as questões.
O objetivo do processo eleitoral é dar destaque a um debate de ideias que favoreça a pluralidade dos interesses e valores existentes na sociedade. Cada vez mais, vivemos sob o signo do pluralismo, isto é, sabemos que os valores e os interesses dos indivíduos variam e não há como decidir sobre qual é o melhor valor ou qual é o interesse correto. Nas sociedades plurais o que prevalece é a diversidade e o sistema político tem que ser capaz de representar essa diversidade. Esse é o verdadeiro interesse público: a pluralidade valorativa. Para que essa pluralidade se manifeste no sistema político é necessário ter um sistema no qual representantes, das mulheres, dos negros, dos grupos minoritários, dos interesses econômicos mais diversos possam se manifestar abertamente. Não é isso que ocorre no sistema político brasileiro hoje. Todos apresentam posições que genericamente são louváveis, por exemplo, a melhoria da educação, a melhoria da saúde, o apoio à juventude, entre outros. Mas ninguém representa posições que se diferenciem no sistema político. Os candidatos mais bem financiados se elegem e somente nesse momento é que fica claro quais interesses eles, de fato, representam. Essa situação nos coloca no pior dos mundos: se é para fazer lobby, o ideal é que ele seja aberto e anterior às eleições. Se é para representar interesses gerais o ideal é que esses sejam representados antes e depois das eleições. Uma pergunta relevante é: por que os candidatos não assumem a representação de interesses e valores específicos?
A resposta a essa pergunta reside no sistema de financiamento de campanha no Brasil. Ele combina representação de interesses genéricos com financiamento diferenciado. O candidato que acaba se elegendo é aquele mais bem financiado ou com uma visibilidade anterior. Os casos são bem conhecidos: Clodovil, Romário ou Tiririca representam o polo dos candidatos que já são conhecidos. Os outros se tornam conhecidos na campanha por meio do dinheiro e utilizam a aliança entre o financiamento e a possibilidade de fazer lobbies depois de eleitos. Um sistema de financiamento público de campanha com listas fechadas pode ajudar a resolver esse problema: a lista fechada hierarquiza os candidatos, diminuindo proporcionalmente o peso do dinheiro nas campanhas. É verdade que ela aumenta o peso das chamadas burocracias partidárias, mas em partidos bem estruturados e com personalidades públicas mais conhecidas, esse não é um problema. Não vou dizer que o interesse público prevaleça no interior dos partidos, mas certamente prevalece um interesse um pouco menos privado. O financiamento público serve para impulsionar candidatos menos conhecidos que podem se tornar conhecidos durante a eleição. É preciso que o sistema político apoie esses candidatos e que boas causas alcancem o Parlamento. Lista fechada e financiamento público podem contribuir efetivamente para uma melhoria do sistema eleitoral, tal como ele está organizado. Mas, enquanto eles não vêm, a questão que se coloca para a população é desconfiar de campanhas muito ricas ou de candidatos sem propostas específicas.
Por último, mais uma vez se coloca a questão do combate à corrupção. Ainda que nós melhoremos as condições através das quais o interesse público pode se manifestar no processo eleitoral, é importante perceber que o sistema político precisa estar submetido às formas de controle público para que se possa combater abusos e punir os casos de corrupção. Eu tenho defendido a posição de que nós temos muitos motivos para supor que está melhorando a capacidade do Estado brasileiro de combater a corrupção.
Também temos evidências de que está diminuindo a impunidade no Brasil. Só para ficar com a conjuntura dessa última semana, podemos perceber dois fatos absolutamente inéditos na história do Brasil: o julgamento pelo S.T.F de um conjunto de pessoas que ocuparam posições de altíssimo escalão no governo federal e a devolução aos cofres públicos de uma parcela significativa dos recursos desviados na construção do prédio do T.R.T. de São Paulo. Ambos os fatos são absolutamente inéditos e são importantes para serem avaliados em perspectiva para pensarmos que o Brasil tem avançado na maneira como ele lida com a corrupção no sistema político. Não podemos pensar apenas em melhorar a qualidade do sistema político com uma série de incentivos para que ele funcione melhor e defenda o interesse da população em geral. Precisamos também criar uma série de mecanismos para punir aqueles que se aproveitam do sistema de representação para se apropriar de recursos públicos. E aqui cabe ressaltar o papel positivo a ser cumprido pela sociedade civil. Foi a sociedade civil que propôs a ficha limpa que estará em vigor pela primeira vez nas eleições de 2012. Temos, assim, um cardápio de alternativas para evitar que os interesses privatistas de espoliação do Estado prevaleçam mais uma vez. Desde propostas para pensarmos como melhorar o sistema político, a propostas para pensarmos como punir aqueles que querem se aproveitar do sistema de representação em benefício próprio. Vale a pena lembrar, no entanto, que nada substitui a capacidade do eleitor de perceber preventivamente os maus candidatos e não elegê-los.
Não é muito bom fazer, ao mesmo tempo, análise política e prescrição. Mas eu diria que para o eleitor votar com a cabeça no interesse público ele deve ter em mente três coisas: desconfiar das campanhas que parecem ser muito caras. Em geral, estas campanhas estão sendo financiadas por fortes interesses privados; fugir de candidatos que tenham condenações legais anteriores ou muitos processos na Justiça; em terceiro lugar, buscar candidatos que defendam interesses e valores específicos de forma corajosa, em vez de repetir generalidades. Quem votar assim, estará mais próximo de contribuir para a formação do interesse público.
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