RS: lançamento da Frente Parlamentar em Defesa das Pessoas Desaparecidas



O Rio Grande do Sul terá um grande reforço na luta contra o desaparecimento de pessoas, especialmente os casos resultantes do tráfico de seres humanos. No dia 04 de março, será instalada a Frente Parlamentar em Defesa das Pessoas Desaparecidas, sob coordenação do deputado estadual Aldacir Oliboni (PT).
A trajetória de trabalho na área dos Direitos Humanos e os recentes casos de tráfico de pessoas do Estado convergiram na motivação do parlamentar para a iniciativa. “Pelo Rio Grande do Sul passam 28 rotas de tráfico nacional e internacional de pessoas. Fechamos o ano de 2012 com 4.696 pessoas desaparecidas. Esta é uma situação que exige nossa mobilização. É nosso dever e responsabilidade aprofundar este debate e indicar caminhos ”, destaca o parlamentar.
Criada com o intuito de ser um espaço para mobilização e informação da sociedade civil e do Estado sobre o tema, a Frente realizará o trabalho de detalhamento da situação de desaparecimento de pessoas e também visa o esclarecimento e a prevenção. “Teremos um canal de diálogo, informação e ampliação do debate sobre esta situação. É um direito básico de qualquer pessoa não ser esquecida e ser localizada. O Estado tem o dever de zelar pelos Direitos Humanos de seus cidadãos  e o desaparecimento implica na violação desses direitos de várias formas”, argumenta Oliboni.

Lançamento

Protocolada em dezembro de 2012, com o aval de 37 deputados e deputadas, a Frente será oficialmente instalada em evento no Plenarinho, 3º andar da Assembleia Legislativa, às 14h. Estão confirmadas as presenças da Ministra dos Direitos Humanos, Maria do Rosário; do presidente da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Tráfico de Pessoas, o deputado federal Arnaldo Jordy (PPS-PA); de secretários estaduais, representantes de organizações não governamentais, representantes dos poderes Judiciário, Executivo e Legislativo, entidade privadas e estatais, dentre outros.

Fonte: release de divulgação
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WikiLeaks: documentos provam intenção dos EUA de derrubar Chávez



Documentos vazados pelo WikiLeaks revelam que os Estados Unidos tentaram derrubar o presidente venezuelano Hugo Chávez utilizando estudantes e tentando forjar uma revolução contra o mandatário. Os dados são de duas empresas estadunidenses que funcionaram, na Venezuela, como braços privados da CIA.
Baseado em e-mails trocados entre as empresas Stratfor e Canvas, o WikiLeaks revelou que ambas as corporações dirigem as ações da oposição venezuelana desde 2006 e desenharam a campanha oposicionista para as eleições parlamentares de 2010.

Os documentos são datados de julho de 2004 a dezembro de 2011. Neles, a empresa de inteligência, Stratfor, revela que fornece análises a corporações multinacionais que pretendem investir na Venezuela e utiliza várias fontes para elaborar seus relatórios.

As correspondências provam que suas motivações e objetivos estão longe de serem independentes e que, na verdade, trabalha como uma agência de inteligência e estratégia, como um braço privado da CIA, para aqueles que buscam investimentos na nação sul-americana.

Para derrotar Chávez, Stratfor e Canvas utilizaram estudantes como estratégia. Em uma das correspondências, enviada em janeiro de 2010, intitulada “Análise da situação na Venezuela”, a Canvas, cuja sede se encontra em Belgrado, propõe uma estratégia copiada da juventude pró-democrática Otpor!, que foi aplicada na Sérvia. Este plano, apoiado pela CIA, utilizou os protestos estudantis e uma revolução para derrubar o presidente Slodoban Milosevic, em 2000.

Nos e-mails enviados pela Stratfor há documentos que detalham os passos recomendados para colocar em marcha uma revolução para derrubar Hugo Chávez.

As correspondências também abordam uma grande variedade de temas, mas se concentram principalmente no setor de energia, particularmente do petróleo, a mudança política, a situação das forças contrarrevolucionárias e o estado das forças armadas.

As empresas detalham ainda as relações da Venezuela com Cuba, China, Rússia e com o Irã, demonstrando o desespero dos funcionários estadunidenses pelo avanço das alianças de Chávez com outros países, principalmente com os latino-americanos.

Fonte:Vermelho
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A Itália à beira da ingovernabilidade


Por Eduardo Febbro

A Itália colocou um pé na fronteira da ingovernabilidade. Ao final das eleições legislativas realizadas domingo e segunda-feira, o Partido Democrático, movimento de centro-esquerda liderado por Luigi Bersani, ganhou as eleições, mas não o poder. A direita ressuscitada de Silvio Berlusconi e a poderosa emergência de uma força política contestadora que cresceu fora dos esquemas tradicionais da prática política deixaram a tímida esquerda italiana com uma escassa maioria para governar. Ninguém sabe hoje quem estará no poder amanhã. A centro-esquerda de Pier Luigi Bersani obteve 29,75% dos votos na Câmara de Deputados. Com isso, consegue o abono de 55% das cadeiras em jogo que o sistema outorga ao ganhador. No entanto, o caminho para o governo tropeça no Senado, onde o Povo da Liberdade, do patético Silvio Berlusconi, em coalizão com a racista Liga do Norte, faz sombra ao PD com 28,96% dos votos. Logo em seguida vem o Movimento Cinco Estrelas, do comediante genovês Beppe Grillo, que obteve 25,5% na Câmara de Deputados e 23,7% no Senado. O atual presidente do Conselho italiano, Mario Monti, ficou distante com cerca de 11% dos votos e perde assim muitas possibilidades de respaldar a centroesquerda em um futuro governo de coalizão.

As eleições não resolveram o dilema italiano e muitos prognosticaram segunda-feira à noite um retorno às urnas para dirimir a incerteza. As duas maiores surpresas desse pleito foram protagonizadas pelo movimento Cinco Estrelas e por Silvio Berlusconi. O primeiro porque conseguiu atrair centenas de milhares de eleitores enojados com o sistema político. O segundo é, indiscutivelmente, a potência eleitoral que Berlusconi ainda detém. Após vinte anos de escândalos de toda índole e há apenas alguns meses de ter deixado o país à beira do abismo moral e financeiro, Berlusconi, segue sendo o árbitro da política nacional. Pior ainda, não é improvável que seja ele quem consiga governar. Acossado pela justiça, com denúncias de conteúdo sexual e acusações de corrupção, Berlusconi sai das urnas com um êxito angustiante. As pessoas seguem acreditando em que as enganou e as manipulou como ninguém. Entre a oferta da centro-direta apresentada por Mario Monti e a direita escandalosa do “Cavaleiro”, a Itália preferiu o último.

Em porcentagens absolutas, o vencedor é a centro-esquerda do Partido Democrático, mas os números desenham um futuro nebuloso. A Itália é, no momento, um país ingovernável. A Câmara de Deputados é da coalizão de centro-esquerda, mas o Senado pertence a Berlusconi. Isso trava praticamente todas as decisões que um futuro governo possa tomar. Todos os caminhos que restam são instáveis: formar um governo estável parece um milagre. Pode-se também pensar em um acordo entre Bersani e o movimento Cinco Estrelas, mas não para governar e sim para mudar a lei dos partidos e, com uma legislação menos diabólica como método, voltar a votar.

O grande herói da noite eleitoral é indiscutivelmente Beppe Grillo. Nela recai um poder que abre um rombo na sólida frente dos partidos de governo italianos. O comediante zombou daqueles que governam e desprezam a sociedade. A Itália ingressou na noite de segunda-feira no seleto grupo de países europeus que, ao cabo de processos eleitorais celebrados em plena crise, terminam com partidos anti-sistema que obtém resultados parlamentares consequentes. O caminho foi aberto pela Grécia no ano passado, quando o movimento da esquerda radical Syriza, dirigido por Alexis Tsipras, esteve a ponto de formar o governo e depois, nas novas eleições realizadas em maio, obteve cerca de 20% dos votos. Syriza ficou como a segunda força política da Grécia, na frente do histórico e corrompido partido socialista grego, Pasok.

Quase simultaneamente, na França, a Frente de Esquerda, de Jean-Luc Mélenchon protagonizou uma penetração eleitoral espetacular par uma formação praticamente nova e em cujo interior há desde socialistas dissidentes, anarquistas libertários, ecologistas e comunistas. De uma maneira distinta, mas com um resultado mais espetacular, a Itália entrou na dissidência política. O movimento Cinco Estrelas, liderado pelo humorista Beppe Grillo, se içou a níveis desafiadores frente a uma casta política que funciona como esses sistemas de irrigação automática: só vive para si mesma, para preservar suas prerrogativas e benefícios. Cinco Estrelas rompeu o esquema. Beppe Grillo estragou a festa dos partidos de governo: o Partido Democrático, de Luigi Bersani, e o Povo da Liberdade, do sobrevivente de todas as batalhas e golpes baixos nos últimos 20 anos, o ex-presidente do Conselho Silvio Berlusconi. Esse movimento é uma mistura ousada, uma espécie de “bíblia junto al calefón”, como diz a letra do célebre tango. Se perguntarem a qualquer italiano que decidiu votar neste partido que se define como uma “comunidade”, sua resposta é inequívoca: porque quero que as coisas mudem.

A mudança é, nas sociedades ocidentais, como a irrenunciável aspiração human ao amor. Algo desejado com uma permanência física e metafísica e sempre postergado por essa tendência à incrustação e ao imobilismo que caracteriza os partidos uma vez que se instalam no poder. Contestadora, aberta e declaradamente anti-sistema, Cinco Estrelas é exatamente igual ao slogan com o qual lançou sua campanha: “o Tsunami tour”. Um tsunami cuja verdadeira capacidade de ação e de construção ainda está por se ver. Disparatado para alguns, populista para outros, Cinco Estrelas, seja como for, é a demonstração de um cansaço infinito que se volta contra a política neste século XXI, uma empresa insaciável de mentiras, manipulações, enganos, uma indústria ao serviço de uma corporação de engravatados e não ao povo que foi tentado com propostas que jamais se cumpriram. A socialdemocracia moderada do presidente francês François Hollande é uma prova amável disso: palavras, palavras, palavras.

Beppe Grillo ingresso por essa brecha de desencanto, de orfandade representativa de uma sociedade onde 8 milhões de pessoas vivem com menos de mil euros por mês – é um índice baixo na Europa – e onde um em cada três jovens não tem trabalho. Força destruidora do sistema que se propõe reparar os esquecimentos interessados da governabilidade acomodada e corrigir o sacrifício a que o neoliberalismo europeu submete a milhões e milhões de indivíduos para não perder as suas já grandiosas margens de lucro. Melhor um milhão de desempregados a mais do que 3% de lucros a menos. Com um blog, uma conta no twitter e sem jamais ter pisado num canal de televisão em um país onde os políticos dão a vida para aparecer na frente das câmeras, Beppe Grillo conquistou as massas. Há alguns anos, este humorista genovês organizou o “Vaffanculo Day”, um dia de protesto global contra os políticos. Agora o Vaffanculo passou dos protestos ás urnas e a Itália entrou em uma incerta dissidência contra o sistema.

Tradução: Katarina Peixoto

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Das ruas para os pixels: videogame quer simular ambiente de protestos populares


Protestos em forma de videogame? Idealizado por italianos, RIOT procura arrecadação colaborativa para lançar jogo para smartphones e computador. Ainda que bem-intencionados, os idealizadores do jogo correm o risco de criar um jogo vazio de sentido, afinal, como dar algum sentido político para um protesto, lhe retirando o significado político e transportando-o para o ambiente dos jogos?
Confiram abaixo matéria publicada no site Opera Mundi.

Um jogo no qual o usário pode interagir e escolher ser polícia ou manifestante durante um protesto popular “onde não há vitórias ou derrotas” e que esbanja aspectos morais e pontos de vista de ambos os lados. Com a proposta de contar a história desses confrontos, o time de produtores italianos do videogame RIOT recolhe dinheiro por meio de crowdfunding (arrecadação colaborativa) para viajar e documentar o que depois irá virar game. Tudo pode ser controlado via smartphone e computador.
“Enquanto a crise econômica avança, o descontentamento de uma população inteira não pode evitar mas explodir em riots, onde o som de várias vozes são ouvidas de uma vez”, escreve o time em sua página riotgame.org. “O que é exatamente o gatilho dessas manifestações?” e “O que sente um policial durante o conflito?” são perguntas que os produtores procurarão responder.
E, para isso, os usuários passarão por experiências em protestos na Itália, Grécia, Egito, Rússia, Nova York e outros lugares do mundo. Apenas comentários de pessoas que estiveram em riots serão levados em consideração, “na busca de mostrar ambos os lados das lutas sem vieses, apenas objetivamente e com fatos”.
O time, liderado pelo editor e cinematógrafo Leonard Mechiari, diz que em um país “afundando em dívidas e corrupção, é praticamente impossível para nós achar um meio de financiar o projeto na Itália” e assim escolheram pedir ajuda financeira ao mundo.
Por meio do site IndieGoGo, a ideia da iniciativa é explicada e um valor estipulado: US$15 mil. Além de custos de despesa dos envolvidos, o valor cobriria a fase de pesquisa e a compra de licenças para lançar o jogo em PC, Mac, iOS, Android e OUYA. Até o momento de conclusão desta matéria, a arrecadação chegava a US$9.757, com ainda 19 dias restantes.

RIOT tem se disseminado na Internet e atraído atenção de outros veículos. Um blog do The New York Times conta que Mechiari teve a ideia do jogo a partir de uma foto de um manifestante, sozinho, levantando uma placa em frente a uma linha de policiais em Cairo e foi influenciado por outro jogo, Superbrothers: Sword and Sworcery EP.


À esquerda, foto no Cairo na qual Mechiari se inspirou; à direita, cena do jogo RIOT, que simula protestos contra polícia


Há um ano, o italiano participou de um protesto em Turim do movimento No TAV contra a construção de uma linha de trem super-rápido que cruzaria os Alpes, ação considerada anti-democrática e ecológica. Lá, Mechiari se sentiu em “um mundo paralelo”, com pessoas correndo na escuridão em meio a granadas. Impressionou-se com a dedicação dos manifestantes e com uma conversa que teve com um policial em um momento mais calmo, descobrindo que ambos os lados têm valores em comum.

O objetivo não é de expressar uma mensagem ideológica, mas de “replicar o sentimento que você tem quando a massa pensa como um único organismo”, de ilustrar o comportamento de ambos manifestantes e forças de segurança na mistura de paixão, adrenalina e caos dos protestos - e assim os jogadores poderão tomar escolhas “morais ou imorais”.



O jogador escolhe de que lado fica e, a partir disso, fica a seu cargo que tipo de decisões tomar


Entre os comentários na rede Reddit estão pessoas com receio de que seja superficial demais, apenas um jogo de minutos. Outro atenta para o fato de que, por ter a intenção de desenvolver na plataforma da Apple, os criadores provavelmente terão que adaptar o jogo para um ambiente limpo, familiar, sem controvérsias políticas ou sociais. 
Mas a maioria mostra grandes expectativas para algo que possa parecer bem realista. Um deles menciona que o jogador será, na verdade, mais um espectador do que um herói, uma vez que é difícil ser um indivíduo em riots reais. O fato de que o jogo é montado em 16 bits (pouca qualidade de pixels) é destacada por outro como vantajoso, porque permite detalhes no corpo, mas não nos rostos, e assim mantendo o jogador focado na linguagem corporal.

O site Indie Statik diz que o jogo parece se inspirar em riots reais por se preocupar com vários aspectos do fenômeno: da cobertura midiática aos líderes políticos que criaram o ambiente para que as revoltas acontecessem.

Aliás, Mechiari já escreveu que recusou ofertas de várias empresas interessadas em financiar o projeto e que não teme a entrada no mundo Apple, porque “o jogo precisa se conectar com a população em geral, então se foca em mostrar a verdade na medida do possível for em vez de manipulá-lo para ganhar mais uns trocos”.

Jogadores de todo o mundo ainda descobrirão se o lema de RIOT emergirá em nossas telas portáteis: “Pare de ouvir às mentiras da mídia, desligue a televisão e se ponha à frente para lutar por sua liberdade de expressão”.



* Com informações de The New York Times, This is my joystick e Indie Statik

Tarso Genro: "O alto comissário do Golbery não toma jeito"


Por Tarso Genro


Como Elio Gaspari foi do velho Partidão e depois se tornou confidente do General Golbery, fazendo, a partir daí, uma carreira de jornalista mordaz e corregedor de todos os hábitos do país, ele se dá o direito de não só inventar tolices nas suas colunas, como também enganar os mais desavisados.
Defende as suas teses principalmente a partir da falsificação da posição dos seus adversários de opinião. Para defendê-las, Elio sempre desqualifica os seus adversários com textos de estilo ferino, que não raro beiram a difamação. Os que se sentem agredidos raramente se defendem, não só porque ele não publica as respostas na sua coluna, mas porque talvez temam despertar nele uma ira ainda maior, que também não abre espaços para o contraditório.
Já fui alvo algumas vezes das suas distorções e falsificações, mas sobre este tema da reforma política preciso responder formalmente, porque se trata de um assunto extremamente relevante para o aperfeiçoamento democrático do país, sobre o qual existem divergências elevadas, tanto dentro da esquerda como da direita democrática.
A estratégia usada por Elio Gaspari para promover suas crônicas foi muito comum na época da ditadura, quando o SNI – através de articulistas cooptados – recheava de informações manipuladas a grande imprensa, sobre a “subversão” e as “badernas estudantis”. O regime tentava, desta forma, tanto manter o controle da opinião pública, como dividir a oposição legal e a clandestina, num cenário em que povo já estava cansado do regime. Elio Gaspari parece que se contaminou com este vício e combinou-o com uma arrogância olímpica: desqualifica todo mundo, não respeita ninguém, o que pode significar uma volúpia de desrespeito a si mesmo, ensejada pela sua trajetória como jornalista com idéias muito próximas de um ceticismo anarco-direitista.
Vários dirigentes políticos, tanto da oposição como da situação – da direita e da esquerda – que não estão satisfeitos com o sistema político atual, debatem uma saída: uma reforma política para melhorar a democracia no país. Todos sabemos que não existe um sistema ideal e perfeito, mas que é possível uma melhora no sistema atual, que pode tornar mais decente a representação e os próprios partidos. Este debate para melhorar a democracia e dar maior coerência ao sistema de representação tem despertado a santa ira de Elio Gaspari, que dispara para todos os lados, mas nunca diz realmente qual é a sua posição sobre o assunto.
No seu artigo “O comissariado não toma jeito”, no qual sou citado nominalmente como defensor de fisiologismos, ele atinge o auge na deformação das opiniões de pessoas que ele não concorda. Vincula, inclusive de maneira sórdida estas opiniões a dirigentes políticos condenados na ação penal 470, para aproveitar a onda midiática que recorre diariamente a estas condenações, não só para desmoralizar a política e os partidos, mas para tentar recuperar os desastrados anos do projeto neoliberal no país, nos quais, como todos sabemos, não ocorreu nenhuma corrupção ou fisiologismo.
As deformações de Elio são explícitas quando ele examina dois pontos importantes da reforma política: o “voto em lista fechada” e o “financiamento público” das campanhas eleitorais. Sobre o voto em lista “fechada” ele argumenta, em resumo, que a “escolha deixa de ser do eleitor”, que vota numa lista preparada pelo Partido, que captura o seu direito de escolha.
Pergunto: será que Elio não sabe que a escolha na “lista aberta” (sistema atual), é feita, também, a partir de uma relação de nomes que é organizada pelos Partidos? E mais: será que Elio não sabe que a diferença entre um e outro sistema é que, no atual, o voto vai para a “fundo” de votos da legenda e acaba premiando qualquer um dos mais votados da lista, sem o mínimo nexo com a vontade do eleitor? Repito, qualquer um da lista, sem que o eleitor possa saber quem ele está ajudando eleger!
Na lista fechada é exatamente o contrário. O eleitor sabe em quem ele está votando. E sabe da “ordem de preferência”, que o seu voto vai chancelar, a partir do número de votos que o Partido vai amealhar nas eleições. O eleitor faz, então, previamente, uma opção partidária – inclusive a partir da qualidade da própria lista que os Partidos apresentaram – e fica sabendo, não só quem compõe a lista do seu partido, mas também a ordem dos nomes que vão ter a preferência do seu voto.
Na lista aberta, ao invés de crescer o poder político dos partidos – que Elio parece desprezar do alto da sua superioridade golberyana – o que aumenta é o poder eleitoral pessoal de candidatos que, neste sistema de lista aberta, carreiam os votos dos eleitores para qualquer desconhecido. Por mais respeito humano que se tenha por figuras folclóricas que ajudam eleger pessoas com meia dúzia de votos, não se pode dizer que a sua influência pessoal possa ser melhor que a influência das comunidades partidárias, por mais defeitos que elas tenham.
A tegiversação sobre o financiamento público das campanhas não é ridícula, porque é simplesmente uma falcatrua argumentativa. Elio diz que este tipo de financiamento não acabará com o “caixa 2” e que tal procedimento vai levar a conta para o povo, que ele chama gentilmente de “patuléia”. Vejamos se estes argumentos são sérios.
Primeiro: ninguém tem a ilusão de acabar com o “caixa 2”, que acompanhará as campanhas, enquanto tivermos eleições. O que devemos e podemos buscar é um sistema que possa diminuí-la, substancialmente, através – por exemplo – de um controle “on line”, de todos os gastos das campanhas, num sistema financiado por recursos conhecidos e previamente distribuídos aos partidos.
Este sistema certamente diminuirá a dependência dos partidos em relação aos empresários e permitirá um controle mais detalhado dos gastos, pois cada partido terá um valor previamente arbitrado, para ser fiscalizado à medida que os recursos forem sendo gastos. Reduzir, portanto, a força do poder econômico sobre as eleições, este é o objetivo central do financiamento público.
Quanto à transferência das despesas para o povo, qualquer aluno do General Golbery – digo aqui da modesta situação de fisiológico que me foi imputada – sabe que as contribuições dadas pelas empresas aos partidos e aos políticos, são “custos” de funcionamento de uma empresa, que integram o preço dos seus produtos e serviços, que são comprados pelo consumidor comum ou pelo Estado.
Quem paga por tudo, sempre, é o povo que trabalha e compra e o Estado que encomenda, compra e paga. O defensor da patuléia, portanto, não está defendendo nem a “viúva” metafórica nem o Estado concreto. Está, sim, defendendo a atual influência do poder econômico sobre os processos eleitorais, de uma forma aparentemente moralista, mas concretamente interessada: acha que o sistema assim está bem. Uma forma de fisiologismo altamente disfarçado. O alto comissário do Golbery não toma jeito.
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Para que serve a tortura?


Por Urariano Mota


Nesta quinta-feira, Contardo Calligaris na Folha de São Paulo deu à sua coluna o mesmo título desta agora. Diz ele:
“O saco plástico do capitão Nascimento funciona. Os ‘interrogatórios’ brutais do agente Jack Bauer, na série “24 Horas”, funcionam. E, de fato, como lembra ‘A Hora Mais Escura’, de Kathryn Bigelow, que acaba de estrear, o afogamento forçado e repetido de suspeitos detidos em Guantánamo forneceu as informações que permitiram localizar e executar Osama bin Laden.
Nos EUA, na estreia do filme, alguns se indignaram, acusando-o de fazer apologia da tortura. Na verdade, o filme interroga e incomoda porque nos obriga a uma reflexão moral difícil e incerta: a tortura, nos interrogatórios, não é infrutuosa -se quisermos condená-la, teremos que produzir razões diferentes de sua inutilidade”.
Antes de mais nada, vale ressaltar que há muito o cinema norte-americano naturaliza a tortura, a injustiça, a exclusão. Desde Hollywood ele tem sido sentinela avançado do modo capitalista, na propaganda dos valores da formação do homem norte-americano. De passagem, lembro um filme de Ford (sim, do grande Ford) em que John Wayne ouve a seguinte frase do empregado do hotel: “você e o cachorro sobem, mas o índio não”. O que dizer de 007, por exemplo, em sua cruzada contra os comunistas? O que falar dos mexicanos e índios, sempre pintados como bandidos desde a nossa infância? O que dizer da ausência de interioridade nos personagens negros que apareciam em seus filmes, sempre em posição subalterna ou de pianista para o amor do casal romântico?
O fundamental é que no fim do texto Calligaris conclui:
“Uma criança foi sequestrada e está encarcerada em um lugar onde ela tem ar para respirar por um tempo limitado. Você prendeu o sequestrador, o qual não diz onde está a criança sequestrada. Infelizmente, não existe (ainda) soro da verdade que funcione. A tortura poderia levá-lo a falar. Você faz o quê?”.
Esse é um recurso de justificativa da tortura é manjado. Seria algo como:
- Você é capaz de matar uma criança?
- Não, claro que não.
- E se a criança fosse uma terrorista?
- Crianças não são terroristas.
- E se ela estivesse domesticada, com lavagem cerebral, que a tornasse uma terrorista?
- Ainda assim, de modo algum eu a veria como uma terrorista.
- E se essa criança trouxesse o corpo cheio de bombas?
- Eu preferiria morrer a matá-la.
- E se essa criança, com o corpo de bombas, entrasse para explodir uma creche?
- Não sei.
- E se nessa creche estivessem os seus filhos e as pessoas que você ama?
- Neste caso…
E neste caso estariam justificados os fuzilamentos de meninos que atiram pedras em tanques de Israel. E neste caso, num desenvolvimento natural, estaria justificado até o assassinato dos que lutam contra a opressão, porque mais cedo ou mais tarde se tornarão terroristas. E para que não vejam nisto um exagero, citamos as palavras de Kenneth Roth, da Human Rights Watch: `Os defensores da tortura sempre citam o cenário da bomba-relógio. O problema é que tal situação é infinitamente elástica. Você começa aplicando a tortura em um suspeito de terrorismo, e logo estará aplicando-a em um vizinho dele` “.
É monstruoso, é um atestado absoluto do desprezo pela pessoa, que na mídia se discuta hoje não a moralidade da tortura, mas a sua eficiência. Esse deslocamento de humanidade – que sai da moral para descer no mais útil -  é sintomático de que não basta mais ser brutais em segredo, na privacidade, escondido. Não. Há de se proclamar que princípios fundamentais da barbárie sejam fundamentos de cidadania. Assim como os defensores  da ditadura têm a petulância de vir a público dizer que apenas se matavam terroristas, portanto, nada de mais; assim como o cão hidrófobo que leva o nome de Bolsonaro – e nesse particular, ele é da mesma raça e doença dos fascistas em geral – zomba sobre os cadáveres de socialistas, agora nas tevês, no cinema, passam à justificação moral da tortura.
Perigo à vista. Nós, os humanistas, temos adotado até aqui uma atitude passiva, ordeira, o que é um claro suicídio. Esse ar de bons-moços que andam pela violência como Cristo sobre as águas, além de suicídio, porque nos afundaremos todos,  é, antes do desastre,  um recolhimento da ética para os fundos que defecam.
Entendam. Longe está este colunista da valentia e poderosas forças. Mas nós que não sabemos atirar balas ou socos,  temos que agir com as armas que a dura vida nos ensinou: escrevendo. E como temos sido omissos.
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A exceção latino-americana


Unica área do planeta onde os gulags de tortura da CIA não se implantaram


Por Greg Grandin


O mapa diz tudo. Como ilustração para um terrível novo relatório, “Globalizing Torture: CIA Secret Detentions and Extraordinary Rendition” [Globalizar a Tortura: Prisões secretas da CIA e as “entregas extraordinárias” (de prisioneiros políticos a outros países para serem torturados fora do território norte-americano veja mais aqui)] recentemente publicado pelo Open Society Institute, o Washington Post construiu um infográfico igualmente terrível: todo pintado de vermelho, como encharcado em sangue; mostra que nos anos depois do 11/9 a CIA transformou quase todo o planeta em um gigantesco arquipélago gulag.


No início do século 20, mapa também quase todo pintado em vermelho era usado para mostrar o alcance global do Império Britânico, onde, se dizia, o sol nunca se punha. Tudo sugere que, entre o 11/9 e o dia em que George W. Bush deixou a Casa Branca, o sol tampouco se punha no império de tortura que a CIA construiu.

No total, dos cerca de 190 países que há no planeta, 54 participaram de diferentes modos do sistema global de tortura construído pelos EUA, acolhendo as prisões da CIA nos “pontos negros” [orig. black site], permitindo que seu espaço aéreo e aeroportos fossem usados para voos clandestinos, oferecendo inteligência, sequestrando estrangeiros ou nacionais do próprio país e repassando-os a agentes norte-americanos para que fossem “entregues” a terceiros países como o Egito ou a Síria. Marca registrada dessa rede, escreveOpen Society, foi sempre a tortura. O relatório documenta os nomes de 136 indivíduos desaparecidos no que o relatório apresenta como operação ainda em andamento, embora os autores deixem bem claro que o número total, implicitamente muito superior, “permanecerá para sempre oculto”, dado o “excepcional nível de sigilo oficial, associado às prisões secretas e à rede das ‘entregas extraordinárias’ de prisioneiros a vários países”.

Nenhuma região do mundo escapa à imensa mancha de sangue. Nem a América do Norte, lar do comando central do gulag global. Nem a Europa, o Oriente Médio, a África, a Ásia. Nem a tão social-democrata Escandinávia. A Suécia entregou pelo menos dois prisioneiros à CIA, em seguida repassados (“entrega extraordinária”) ao Egito, onde foram torturados com choques elétricos e sofreram outras violências. Nenhuma região escapa... exceto a América Latina.


O que mais chama a atenção no mapa publicado pelo Post é que, na América Latina, não se vê nenhuma marca vermelha-cor-de-sangue, horrenda marca de postos de tortura distribuídos pelo planeta pela CIA. De fato, nenhum dos países do que um dia se chamou “o quintal de Washington” participou do programa de entrega de prisioneiros, por agentes norte-americanos, para serem torturados fora do território dos EUA; nenhum apoiou o programa dirigido por Washington; nenhum recebeu, para serem torturados, quaisquer “suspeitos de terrorismo”. Nem a Colômbia, país que, nos últimos 20 anos, foi o estado-cliente mais próximo dos EUA na região. É verdade que deveria aparecer uma marca de sangue sobre a ilha de Cuba, mas só faria confirmar o que já se viu. Ali não é território latino-americano desde que Teddy Roosevelt tomou para os EUA a Base Naval de Guantánamo, em 1903, como “propriedade perpétua”.

Duas, três, muitas CIAs

Como a América Latina conseguiu tornar-se territorio libre nesse novo mundo distópico de prisões “pontos negros” e voos na calada da noite, o Sion dessamatrix (como diriam os fãs dos filmes de Wachowskis) militarista? Afinal de contas, foi na América Latina que uma primeira geração de especialistas em contraguerrilha norte-americanos ou financiados pelos EUA criaram um protótipo do que seria a Guerra Global ao Terror, de Washington, no século 21.
Já antes da Revolução Cubana de 1959, antes de Che Guevara convocar os revolucionários a criarem “dois, três, muitos Vietnãs”, Washington já tratava de instalar duas, três, muitas agências centralizadas de inteligência na América Latina. Como Michael McClintock mostra em seu indispensável Instruments of Statecraft, no final de 1954, poucos meses depois do infame golpe que a CIA promoveu na Guatemala e que derrubou governo democraticamente eleito, o Conselho Nacional de Segurança dos EUA recomendava “fortalecer as forças internas de segurança nas nações estrangeiras amigas”. Na Região, significa três coisas.

Primeiro, os agentes da CIA e outros funcionários dos EUA puseram-se a trabalhar “profissionalizando” as forças de segurança de vários países (Guatemala, Colômbia e Uruguai) – quer dizer: convertendo os aparelhos locais de inteligência, quase sempre brutais, mas pouco eficazes, em agências sempre brutais, mas “centralizadas” e eficientes, capazes de reunir informações, analisá-las e armazená-las. Mais importante, cuidaram de coordenar os vários braços das forças de segurança de cada país – a polícia, os militares e os esquadrões paramilitares – para agirem a partir da informação obtida, ação quase sempre letal e sempre brutal.

Segundo, os EUA expandiram enormemente o alcance dessas novas agências muito mais eficazes e eficientes, deixando bem claro que trabalhavam não só na defesa nacional, mas também na agressão contra estrangeiros. Estavam sendo construídas para serem a vanguarda de uma guerra global pela “liberdade” e de um império anticomunista de terror em todo o hemisfério.

Terceiro, os agentes norte-americanos em Montevidéu, Santiago, Buenos Aires, Assunção, La Paz, Lima, Quito, San Salvador, Cidade da Guatemala e Manágua trabalhariam para sincronizar a operação de todas as diferentes forças nacionais de segurança.


O resultado foi estado de terror em escala praticamente continental. Nos anos 1970s e 1980s, a “Operação Condor” [1] do ditador chileno Augusto Pinochet, na qual operaram juntos serviços de inteligência de Argentina, Brasil, Uruguai, Paraguai e Chile, foi o mais infame consórcio transnacional de terror, com ações criminosas em Washington (assassinato de Orlando Letelier), em Paris e em Roma. Os EUA, desde antes, já trabalhavam para construir  operações desse tipo no hemisfério sul, principalmente na América Central, nos anos 1960s.

Quando a União Soviética entrou em colapso em 1991, centenas de milhares de latino-americanos haviam sido torturados, assassinados, sequestrados e desaparecidos, ou presos sem julgamento, por resultado, em grande parte, das habilidades organizacionais e do apoio de agentes terroristas norte-americanos. A América Latina era, então, o gulag de fundo de quintal de Washington. Os atuais presidentes de três países da região – José Mujica, do Uruguai; Dilma Rousseff, do Brasil; e Daniel Ortega da Nicarágua – foram vítimas desse reino de terror.

Quando terminou a Guerra Fria, grupos de direitos humanos começaram a tarefa hercúleo de desmantelar a rede amplíssima, muito profundamente enraizada, de dimensões continentais, de agentes de inteligência, espiões, prisões clandestinas e técnicas de tortura – e de expulsar do governos da região os militares, enviando-os de volta à caserna. Nos anos 1990s, Washington não só não se opôs a esse processo como, de fato, até deu uma ajuda na despolitização das Forças Armadas na América Latina. Muitos acreditaram que, com a União Soviética fora do páreo, Washington poderia projetar o próprio poder no próprio quintal mediante meios mais ‘suaves’ como acordos internacionais de comércio e outras modalidades de alavancagem econômica., Aconteceu, então, o 11/9.

Oh My Goodness

Rumsfeld
No final de novembro de 2002, exatamente quando os traços básicos dos programas de prisões secretas e deentregas extraordinárias [de prisioneiros, para serem torturados] da CIA estavam sendo delineados noutra parte do mundo, o Secretário de Defesa dos EUA, Donald Rumsfeld viajou quase 10 mil quilômetros até Santiago, Chile, para participar de uma reunião de Ministros de Defesa do hemisfério. “Desnecessário dizer”, disse Rumsfeld, retórico,“que eu não viajaria toda essa distância se não achasse que é evento extremamente importante”. E era.

Foi depois da invasão do Afeganistão, mas antes da invasão do Iraque, e Rumsfeld surfava altas ondas, além de repetir “11 de setembro” praticamente de segundo em segundo. Talvez não conhecesse o especial significado da data em toda a América Latina, mas 29 anos antes, no primeiro 11/9, um golpe apoiado pelo general Pinochet e seus militares, com apoio da CIA, levara à morte o presidente Salvador Allende, democraticamente eleito para governar o Chile. Ou talvez soubesse e aí estivesse, exatamente, o que mais o interessava? De fato, estava em preparação uma nova guerra global de defesa da liberdade, chamada dessa vez Guerra Global ao Terror. Rumsfeld chegava para arregimentar recrutas.

Lá, em Santiago, na cidade da qual Pinochet comandara a Operação Condor, Rumsfeld e outros funcionários do Pentágono tentaram vender o que chamavam então de “integração” de “várias capacidades integradas em maiores capacidades regionais” – fórmula insípida de descrever sequestro, tortura e outros meios mortais que já estavam em andamento em outros pontos. “Eventos em todo o mundo antes e depois de 11 de setembro sugerem as vantagens” – disse  Rumsfeld, de as nações trabalharem em conjunto para enfrentar a ameaça terrorista.

Pinochet
Oh my goodness [Santo Deus!]” – disse Rumsfeld a um repórter chileno – “os tipos de ameaças que enfrentamos são globais”. A América Latina estava em paz, admitiu, mas tinha um aviso para os líderes latino-americanos: não cometessem a tolice de convencer-se de que o continente estaria a salvo de nuvens que engrossavam em outros pontos. Os perigos existem,“antigas ameaças, como drogas, crime organizado, tráfico de armas, sequestros, captura de reféns, pirataria e lavagem de dinheiro; e novas ameaças, como cibercrimes; e ameaças desconhecidas, que podem surgir sem aviso”.

“Novas ameaças”, acrescentou, “têm de ser enfrentadas com novas capacidades”. Graças ao relatório agora publicado pela Open Society, vê-se hoje exatamente de que “novas capacidades” Rumsfeld falava.

Poucas semanas antes de Rumsfeld chegar a Santiago, por exemplo, os EUA, agindo baseados em informação falsa fornecida pela Real Polícia Montada do Canadá, haviam prendido Maher Arar, homem de duas nacionalidades, sírio e canadense, no aeroporto John F. Kennedy de New York; em seguida o entregaram a uma “Unidade Especial de Remoção” [orig. Special Removal Unit]. Foi levado primeiro à Jordânia, onde foi espancado; depois, foi levado à Síria, país que vive em fuso horário cinco horas adiante em relação ao Chile, onde foi entregue a torturadores locais. Dia 18 de novembro, quando Rumsfeld fazia sua palestra em Santiago ao meio dia, já eram cinco da tarde na “cela-túmulo” de Arar numa prisão da Síria. Ali Arar passaria, sob tortura, todo o ano seguinte.

Ghairat Baheer
Ghairat Baheer foi capturado no Paquistão cerca de três semanas antes da viagem de Rumsfeld ao Chile, e jogado numa prisão controlada pela CIA no Afeganistão, chamada Salt Pit. Enquanto o Secretário de Defesa elogiava o retorno da América Latina ao Estado de Direito, depois dos negros dias da Guerra Fria, é provável que Baheer estivesse no meio de uma sessão de tortura “pendurado nu, durantes horas”.

Capturado um mês antes da visita de Rumsfeld a Santiago, o cidadão saudita Abd al Rahim al Nashiri foi transportado para Salt Pit; depois foi transferido “para outro ponto negro em Bangkok, Tailândia, onde sofreu simulação de afogamento”. Depois, passou pela Polônia, Marrocos, Guantánamo, Romênia, e voltou a Guantánamo, onde permanece. Nesse período, foi submetido a “simulação de execução com pólvora seca, com ele em pé e amarrado”; e um interrogador norte-americano encostou uma arma semiautomática na cabeça dele, com ele sentado à sua frente”. Os interrogadores também “o ameaçaram de trazer sua mãe, para ser estuprada à frente do filho”.

Cerca de um mês antes da reunião em Santiago, o iemenita Bashi Nasir Ali Al Marwalah foi levado de avião para Camp X-Ray, na ilha de Cuba, onde permanece até hoje.

Menos de duas semanas depois que Rumsfeld jurou que os EUA e a América Latina partilhariam “valores comuns”, Mullah Habibullah, cidadão afegão, morreu “depois de sofrer graves maus tratos” quando estava sob custódia da CIA num local chamado “Bagram Collection Point”. Investigação militar nos EUA “concluiu que o uso de posições de estresse e privação de sono, combinado a outros tipos de agressões (...) causaram ou foram fatores que contribuíram diretamente para sua morte”.

Dois dias depois do discurso do secretário em Santiago, um agente da CIA que trabalhava em Salt Pit, acorrentara Gul Rahma nu, num bloco de concreto, ao ar livre. Rahma morreu de frio.

E o relatório da Open Society prossegue assim, com muitos e muitos e muitos outros casos.

Territorio Libre

Rumsfeld deixou Santiago sem obter compromissos firmes. Alguns dos militares da região sentiram-se tentados pelas supostas oportunidades que parecia haver na visão do secretário, de fundir luta contra crimes comuns e uma campanha ideológica contra o Islã radical, uma guerra unificada na qual tudo ficava subordinado ao comando dos EUA. Como observou o cientista político Brian Loveman, à época da visita de Rumsfeld a Santiago, o comandante do Exército Argentino abraçara o mais recente conjunto de temas de Washington; e insistia em que “defesa é questão a ser tratada de modo integrado, sem falsas divisões a separarem segurança interna e externa”.

Mas a história não andava a favor dos planos de Rumsfeld. Sua viagem a Santiago coincidiu com a crise de proporções épicas que se abateu sobre as finanças argentinas, das piores da história. A crise marcou colapso muito profundo e amplo do modelo econômico – algo como um “reganismo super carregado de esteróides” – que Washington muito fizera para promover na América Latina, desde o final da Guerra Fria. Em pouco tempo, uma nova geração de políticos de esquerda começaria a chegar ao poder em grande parte do continente, e comprometidos com a noção de soberania nacional, o que implicava limitar a influência de Washington na região, mais do que qualquer de seus predecessores.

Luiz Ignácio Lula da Silva (E), Hugo Chávez Frías(C), Néstor Kirchner(D)
Hugo Chávez já era presidente da Venezuela. Apenas um mês antes da viagem de Rumsfeld a Santiago, Luiz Inácio Lula da Silva foi eleito presidente do Brasil pela primeira vez. Poucos meses depois, no início de 2003, os argentinos elegeram Néstor Kirchner, que pouco depois de empossado pôs fim às manobras militares conjuntas com os EUA. Nos anos seguintes, os EUA sofreram baque após baque. Em 2008, por exemplo, o Equador expulsou os norte-americanos da Base Aérea Manta, que os EUA mantinham no país [2] 

Naquele mesmo período, o frenesi de que foi tomado o governo Bush para invadir o Iraque, ato ao qual se opuseram a maioria dos países latino-americanos, também contribuiu para minar o que ainda restasse da boa vontade pró-EUA que o 11/9 produzira na região. O Iraque parecia confirmar as mais sinistras previsões dos novos presidentes latino-americanos: que a tal “força para manutenção da paz”, de cuja relevância Rumsfeld tanto queria convencê-los, não passava de isca, com a qual esperava arregimentar soldados latino-americanos como Gurkhaspara uma guerra imperial unilateral a ser ressuscitada.

No Brasil, a “cortina de fumaça”

Telegramas diplomáticos dos EUA divulgados por WikiLeaks mostram o quão firmemente o Brasil rejeitou os esforços de Washington para pintar o país de vermelho-sangue, no novo mapa do gulag global.

Telegrama do Departamento de Estado, de maio de 2005, por exemplo, revela que o governo do presidente Lula recusou “múltiplas solicitações” feitas por Washington para que o país acolhesse prisioneiros libertados da prisão de Guantánamo, particularmente um grupo de cerca de 15 uigures que os EUA mantinham presos desde 2002 e não podiam ser mandados de volta para a China.

“A posição [do Brasil] quanto a essa questão não mudou desde 2003 e não há sinais de que venha a mudar em futuro próximo” – diz o telegrama. Na sequência, relatava que o governo Lula dera a entender que considerava todo o sistema montado em Guantánamo (e por todo o planeta) como afronta à lei internacional. “Todas as tentativas de discutir essa questão com funcionários do governo do presidente Lula” concluía o telegrama, “foram rapidamente rejeitadas, ou aceitas sem entusiasmo e não prosperaram”.

Além disso, o Brasil também não aceitou qualquer cooperação com o governo Bush para criar o que seria uma versão, para todo o Hemisfério Ocidental da lei conhecida como Patriot ActO plano implicava, e foi rejeitado por isso, revisar a legislação local de modo a rebaixar as exigências para comprovar prática de crime de conspiração, ao mesmo tempo em que se ampliaria a definição do crime de conspiração.

Lula congelou a iniciativa e manteve-a congelada por vários anos, mas parece que o Departamento de Estado não percebeu o movimento, ou não o compreendeu corretamente. Até que, em abril de 2008, afinal, um diplomata dos EUA escreveu que o suposto interesse do Brasil em reformar seu código de leis, acolhendo o pedido de Washington, não passava, mesmo, de “cortina de fumaça”. O governo brasileiro, conjecturava o diplomata, temia que expandir a definição de terrorismo visasse a permitir ataques contra “membros de movimentos que [o governo Lula] considera legítimos movimentos sociais que lutam por sociedade mais justa”. E não seria possível “redigir leis anti-terrorismo que excluíssem as práticas corriqueiras” da base social de esquerda que apoiava o governo Lula.

Um diplomata norte-americano reclamou que esse “modo de pensar” – quer dizer, um modo de pensar de quem realmente valoriza as liberdades civis – “implica graves desafios aos nossos esforços para promover a cooperação contra o terrorismo ou promover a aprovação de leis antiterrorismo”. Além disso, o governo do Brasil preocupava-se com a possibilidade de a mesma legislação vir a ser usada para perseguir árabe-brasileiros, que são muitíssimos, no Brasil.

Pode-se concluir que, se o Brasil e os demais países latino-americanos tivessem concordado com integrar-se ao programa de “entregas especiais” de prisioneiros para serem torturados também na América Latina, a Open Society teria lista muito maior de torturados a publicar em seus relatórios.

Para finalizar, telegrama também distribuído por WikiLeaks revelou que o Brasil rejeitou várias vezes os esforços dos EUA para isolar Hugo Chávez, presidente da Venezuela, providência absolutamente indispensável para que os EUA conseguissem comandar toda a operação de antiterrorismo em que planejavam envolver o continente.

Nelson Jobim
Em fevereiro de 2008, por exemplo, o embaixador dos EUA no Brasil reuniu-se com o ministro da Defesa de Lula, Nelson Jobim, para queixar-se de Chávez. Jobim disse a Sobell que o Brasil partilhava a “sua preocupação sobre a possibilidade de a Venezuela exportar instabilidade”. Mas, em vez de “isolar a Venezuela”, o que poderia levar apenas a maior polarização, Jobim “sugeriu que seu governo apoiaria a criação de um Conselho Sul Americano de Defesa, para controlar Chávez e impedi-lo de gerar turbulências”.

Só havia um problema: o Conselho Sul Americano de Defesa já era, então, ideia de Chávez! Foi parte de seu esforço, em parceria com Lula do Brasil, para criar instituições independentes, paralelas às instituições controladas por Washington. Na conclusão do telegrama, o embaixador dos EUA estranha a ideia de que o Brasil cogitasse de usar a ideia de Chavez para “cooperação de Defesa”, como parte de uma “suposta estratégia”... para conter Chávez.

Para engripar a engrejagem da máquina perfeita de guerra perpétua

Incapaz de pôr em operação seus planos de contraterrorismo pós 11/9 em toda a América Latinao governo Bush re-entrincheirou-sePassou a tentar construir uma “máquina perfeita de guerra perpétua” num corredor que ia da Colômbia, pela América Central, até o México. O processo militarizar essa região mais delimitada, quase sempre sob o disfarce de que ali haveria “guerras de drogas”, só fez crescer e ampliar-se durante o governo Obama, para dizer o mínimo. A América Central converteu-se, sim, em única área na qual o SOUTHCOM – comando do Pentágono que cobre as Américas Central e do Sul – consegue operar mais ou menos à vontade. Basta considerar este outro mapa,construído por Fellowship of Reconciliation, que mostra a região como uma espécie de longa área de livre movimentação aérea para os drones e para operações norte-americanas de caça a traficantes de drogas.

Washington continua a tentar avançar cada vez mais para o sul, tentando estabelecer-se como corpo militar na região; dessa vez, pôs a coisa em embalagem mais tecnocrática e menos ideológica, mas ainda é aspiração de globalizamento. Os estrategistas militares dos EUA, por exemplo, adorariam contar com uma faixa de ampla movimentação aérea na Guiana Francesa ou na parte do Brasil que avança pelo Atlântico. O Pentágono a usaria como apoio, no projeto de aumentar sua presença já crescente na África – o que permitiria que seu SOUTHCOM passasse a agir em coordenação com o o AFRICOM, o mais novo comando global dos EUA. Mas, pelo menos por hora, a América do Sul está conseguindo engripar e manter engripada a máquina norte-americana de guerra perpétua.

Voltando ao mapa do Washington Post, vale a pena registrar que, pelo menos nessa parte do mundo, pelo menos nesse século 21, o sol ainda não raiou na coreografia da tortura global coreografada pelos EUA.



Notas dos tradutores

[1] A ver, sobre essa Operação Condor, também, o documentário Condor (Brasil, 2007, dir. Roberto Mader), interessantíssimo. 

[2] Sobre o fim da base militar dos EUA no Equador: 22/5/2012, vídeo-entrevista traduzida:  Assange entrevista No. 6 – “Rafael Correa, presidente do Equador”, em que os dois comentam o episódio:


JULIAN ASSANGE: Seu Governo fechou a base militar dos EUA em Manta. Pode dizer-me por que decidiu fechar aquela base?

RAFAEL CORREA: Ora... Você aceitaria uma base militar estrangeira no seu país? Como eu disse naquela época: se é assunto tão simples, se não há problema algum em os EUA manterem uma base militar no Equador, ok, tudo bem: permitiremos que a base de inteligência permaneça no Equador, se os EUA permitirem que estabeleçamos uma base militar do Equador em Miami. Nessas condições, ok, sem problema. [Assange ouve a tradução e ri]
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